quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

NOS PASSOS DE JOANA D’ARC EM ROUEN- por Francisco Souto Neto


NOS PASSOS DE JOANA D’ARC EM ROUEN
por Francisco Souto Neto


Folha do Batel Ano 4 – Outubro 2002 – Nº 36
Diretor-presidente: José Gil de Almeida

Capa:



Página 4:



NOS PASSOS DE JOANA D’ARC EM ROUEN
Francisco Souto Neto

No ano de 1431 a cidade francesa de Rouen, na Normandia, litoral norte da França, testemunhou o martírio de Joana d’Arc, queimada viva na fogueira da praça do Vieux-Marché, acusada pela Igreja Católica de heresia e bruxaria.

A caça às bruxas

No final da Idade Média, a crença na bruxaria generalizou-se e tomou vulto na Europa, notadamente na Alemanha, França, Espanha, Inglaterra e Escócia, quando a chamada Santa Inquisição da Igreja Católica – que de “santa” nada tinha – se instalou nos referidos países. A acusação e a perseguição às supostas bruxas foram sistemáticas e violentas. Tal perseguição foi realizada pelos “Tribunais da Inquisição” nos países católicos, e pela justiça civil nos países protestantes, mas o processo penal era o mesmo em ambos os casos: confissões arrancadas pela tortura e morte na fogueira.
O iluminismo do fim do século XVII e do século seguinte, passou a não permitir a perseguição judiciária por causa das superstições populares ou pseudo-científicas. A última queima de uma bruxa na Europa aconteceu em 1782, no cantão suíço de Glarus. Os arquivos dos tribunais foram pesquisados por historiadores, como o norte-americano Charles Henry Lea, no final do século XIX, muitas vezes acusados de exagero. Mas pesquisas mais modernas confirmam os resultados encontrados por Lea e outros: o número de vítimas condenadas à fogueira, do fim do século XV ao fim do XVIII, pode ser avaliado em nove milhões de pessoas.

A torre e a fogueira

No ano passado, viajando pela Normandia com meu amigo Rubens Faria Gonçalves, hospedamo-nos em Rouen no Hotel Le Morand, que data do século XVII. Tínhamos feito a reserva com meses de antecedência, e o Monsieur Letrate, proprietário do hotel, reservou-nos um espaçoso apartamento no terceiro andar, de cuja janela podíamos avistar, a apenas uns cem metros de distância, a sinistra Torre de Joana d’Arc, onde a heroína da França foi torturada e violentada antes de ser mandada para a morte na fogueira.

Da janela do nosso apartamento no Hotel Le Morand,
avistamos a sinistra torre na qual Joana d'Arc foi torturada
antes de ser mandada para a morte na fogueira.

Fomos conhecer a antiga construção e subimos pelos mesmos degraus já desgastados pelos séculos, galgados pela menina frágil condenada pela ignorância, obscurantismo e pequenez mental dos religiosos, numa mesma época em que os arquitetos erguiam extraordinárias catedrais.

Visitamos a prisão de Joana d'Arc na Torre.
Jardim de acesso.

Porta de entrada à Torre.

   
Rubens Gonçalves na escada que
leva ao alto da Torre de Joana d'Arc.

Logo dirigimo-nos à Place de Vieux-Marché (Praça do Velho Mercado), onde Joana d’Arc encontrou sua morte dolorosa. Aproximamo-nos do local e fiquei muito impressionado ao ver que aquela parte da praça é pedregosa, quase sem grama, mas o exato lugar da fogueira está coalhado de petúnias em três tons de vermelho que, ao vento, parecem chamas movimentando-se. É de arrepiar.
Embora a morte de Joana d’Arc tenha ocorrido há exatos 571 anos, não há dúvidas quanto ao local exato, porque uns metros além do ponto onde morriam as vítimas da Inquisição, estão as ruínas do “mur par-feu” (muro pára-fogo) que tinha a função de evitar que o vento propagasse as fogueiras humanas. O jardim, de formato circular, porém irregular, é como que contido pelas ruínas do muro. Ao lado está o “pilori” (pelourinho), onde os condenados esperavam sua hora para morrer na fogueira. Bem ao centro do jardim, uma placa diz: “LE BÛCHER – Emplacement où Jeanne d’Arc fut brûleé le 30 Mai 1431 (A FOGUEIRA – Lugar onde Joana d’Arc foi queimada em 30 de maio de 1431”. Em frente à “fogueira” há uma cruz na altura de um prédio de uns cinco andares. Ao fundo de tudo, localiza-se a Église de Jeanne d’Arc, uma igreja de meados do século XX, moderna e esquisita por fora, contrastando com a antiguidade de Rouen.


A placa indica "Le Bûcher" ("A Fogueira"), local que
provocou tanto sofrimento. As petúnias simulam as chamas 
onde Joana d'Arc e milhares de outros foram supliciados.

Rubens Gonçalves ao lado do pelourinho, onde os
condenados esperavam a hora de morrer na fogueira.

Praça do Velho Mercado. Souto Neto pisa sobre ruínas
das casas que ali existiram no tempo em que Joana d'Arc
morreu, no começo do século XV.

O Velho Mercado funciona num dos lados da praça a que dá o seu nome, porém seu teto é moderno, da mesma idade da igreja, mas muito criativo porque faz lembrar gigantescas labaredas. A praça é cheia de restaurantes, gente passando com seus cachorros, barracas com vendas de flores... uma verdadeira festa alheia aos dramas e martírios que ali ocorreram no passado.
Todos os dias passávamos pela “fogueira” e nos detínhamos um pouco. Eu ficava quase hipnotizado vendo as chamas – as flores – bruxuleando ao vento. O passado torna-se ali quase palpável, quase concreto. Ver tal jardim foi uma das mais marcantes impressões de todas as coisas que vi e senti em muitas viagens à Europa.

A catedral de Rouen

A catedral é de tirar o fôlego pela beleza da fachada e das suas torres do gótico flamejante. Ela é quase um delírio dos arquitetos medievais que, em diferentes épocas, realizaram as múltiplas torres desiguais. Sua flecha central é altíssima, gigantesca. Meu companheiro de viagem observou que aquela mistura de tantas torres de diferentes formatos e alturas na fachada retilínea, chegava a ser uma confusão. Estava certo. Concordei e disse-lhe brincando: “Sim, é um forrobodó arquitetônico”. Contornamos a catedral, procurando pela famosa fachada oeste, a preferida de Monet, tantas vezes retratada pelo velho mestre impressionista. Monet tinha razão por preferir aquela fachada, harmoniosa, de extraordinário rendilhado e magnífica rosácea. O interior do templo não é menos fantástico. Um dos destaques, visto somente com visitas guiadas, é o túmulo onde está enterrado o coração de Ricardo Coração de Leão.

Fachada retilínea da monumental e imensa Catedral de Rouen, 
obra-prima da Arte Gótica, com suas extraordinárias,
 desiguais e altíssimas torres rendilhadas.

Rubens Gonçalves na fachada oeste da Catedral
de Rouen, que é uma entrada lateral.

Souto Neto na fachada oeste, que era a preferida
de Monet, e que foi por ele inúmeras vezes retratada.

Após quatro dias de permanência em Rouen, deixamos a cidade rumo a Strasbourg. Antes do embarque, porém, voltamos por alguns instantes à Praça do Velho Mercado. Ao passarmos pela fogueira de Joana d’Arc ficamos, novamente, por uns instantes, como que hipnotizados, vendo as labaredas ao vento...
-o-

O Espiritismo entre os Druidas


O Espiritismo entre os Druidas

Revista Espírita, abril de 1858
Sob esse título: O velho novo, o senhor Edouard Fournier publicou, no Século, há uns dez anos, uma série de artigos tão notáveis, do ponto de vista da erudição, quanto interessantes sob o aspecto histórico. O autor, passando em revista todas as invenções e descobertas modernas, prova que se nosso século tem o mérito da aplicação e do desenvolvimento, não tem, pelo menos para a maioria, o da prioridade. À época em que o senhor Edouard Fournier escrevia o seu folhetim, não havia, ainda, a questão dos Espíritos, sem o que não teria deixado de nos mostrar que tudo o que se passa hoje não é senão uma repetição do que os Antigos sabiam muito bem, e talvez melhor do que nós. E o lastimamos por nossa conta, porque as suas profundas investigações lhe teriam permitido pesquisar a antigüidade mística, como pesquisou-se a antigüidade industrial; fazemos coro para que um dia dirija para esse lado suas laboriosas pesquisas. Quanto a nós, nossas observações pessoais não nos deixam nenhuma dúvida sobre a antigüidade e a universalidade da doutrina que os Espíritos nos ensinam. Essa coincidência entre o que nos dizem hoje e as crenças dos mais recuados tempos, é um fato significativo da mais alta importância. Faremos notar, todavia, que, se encontramos por toda parte traços da Doutrina Espírita, em nenhuma parte a vemos completa: parece haver sido reservado à nossa época coordenar esses fragmentos esparsos entre todos os povos, para chegar à unidade de princípios, no meio de um conjunto mais completo e, sobretudo, mais geral de manifestações, que parecem dar razão ao autor do artigo que citamos mais acima, sobre o período psicológico no qual a Humanidade parece entrar.
A ignorância e os preconceitos, quase por toda parte, desfiguraram essa doutrina, cujos princípios fundamentais estão misturados a práticas supersticiosas de todos os tempos, exploradas para sufocar a razão. Mas sob esse montão de absurdos, germinam as mais sublimes idéias, como sementes preciosas ocultas sob os estorvos, e não esperando senão a luz vivificante do Sol para alçar seu vôo. Nossa geração, mais universalmente esclarecida, descarta os estorvos, mas um tal cultivo não pode se cumprir sem transição. Deixemos, pois, às boas sementes, o tempo de se desenvolverem, e às más ervas o de desaparecerem. A doutrina druídica nos oferece um curioso exemplo do que acabamos de dizer. Essa doutrina, da qual conhecemos somente as práticas exteriores, se elevava, sob certos aspectos, até as mais sublimes verdades; mas essas verdades eram apenas para os seus iniciados: o vulgo, terrificado pelos sangrentos sacrifícios, colhia com um santo respeito o visgo sagrado do carvalho, e não via senão a fantasmagoria. Isso se poderá julgar pela citação seguinte, extraída de um documento tanto mais precioso quanto é pouco conhecido, e que lança uma luz inteiramente nova sobre a verdadeira teologia de nossos pais.
"Entregamos, à reflexão dos nossos leitores, um texto céltico publicado há pouco e cuja aparição causou uma certa emoção no mundo sábio. É impossível saber, ao certo, quem lhe foi o autor, nem mesmo a que século remonta. Mas, o que é incontestável, é que pertence à tradição dos bardos do país de Galles, e essa origem basta para lhe conferir um valor de primeira ordem.
"Sabe-se, com efeito, que o país de Galles se constitui, ainda em nossos dias, no mais fiel abrigo da nacionalidade gaulesa, que, entre nós, experimentou modificações tão profundas. Apenas roçado pela dominação romana, que aí não toca senão por pouco tempo e fracamente; preservado da invasão dos bárbaros pela energia dos seus habitantes e pelas dificuldades do seu território; submetido, mais tarde, pela dinastia normanda, que deveu, todavia, lhe deixar um certo grau de independência, o nome de Galles, Gallia, que sempre ostentou, é um traço distintivo pelo qual ele se prende, sem descontinuidade, ao período antigo. A língua kymrique, falada outrora em toda a parte setentrional da Gaule, jamais cessou de aí estar em uso, e muitos dos costumes são igualmente gauleses. De todas as influências estrangeiras, a do Cristianismo foi a única que encontrou meio de aí triunfar plenamente; mas não o foi sem muitas dificuldades relativamente à supremacia da Igreja romana, cuja reforma do décimo-sexto século não fez mais do que determinar a queda, desde há muito tempo preparada, nessas regiões cheias de um sentimento indefectível de independência.
"Pode-se mesmo dizer que os druidas, convertendo-se inteiramente ao Cristianismo, não se extinguiram totalmente no país de Galles, como na nossa Bretagne, e em outros países de sangue gaulês. Tiveram, por conseqüência imediata, uma sociedade muito solidamente constituída, votada principalmente, em aparência, ao culto da poesia nacional, mas que, sob o manto poético, conservou com fidelidade notável a herança intelectual da antiga Gaule: foi a Sociedade bárdica do país de Galles, que, depois de se manter como sociedade secreta durante toda a duração da Idade Média, por uma transmissão oral dos seus monumentos literários e da sua doutrina, à imitação das práticas dos druidas, decidiu, entre o décimo-sexto e o décimo-sétimo século, confiar à escrita as partes mais essenciais dessa herança. Desse fundo, cuja autenticidade está assim atestada por uma cadeia tradicional ininterrupta, procede o texto do qual falamos; e seu valor, em razão dessas circunstâncias, não depende, como se vê, nem da mão que teve o mérito de colocá-lo por escrito, nem da época na qual a sua redação pôde ter adquirido sua última forma. O que nele respira, acima de tudo, é o espírito dos bardos da Idade Média, que, eles mesmos, eram os últimos discípulos dessa corporação sábia e religiosa que, sob o nome de druidas, dominou a Gaule, durante o primeiro período da sua história, quase do mesmo modo que o clero latino durante o da Idade Média.
"Estar-se-ia mesmo privado de toda luz sobre a origem do texto, do qual se trata, se não se o tivesse colocado, bastante claramente, no caminho, em face do seu acordo com as informações que os autores, gregos e latinos, nos deixaram relativamente à doutrina religiosa dos druidas. Esse acordo constitui pontos de solidariedade que não sofrem nenhuma dúvida, porque se apóiam sobre as razões tiradas da própria substância do escrito; e a solidariedade assim demonstrada pelos artigos capitais, os únicos dos quais os Antigos nos falaram, se estende, naturalmente, aos desenvolvimentos secundários. Com efeito, esses desenvolvimentos, penetrados do mesmo espírito, derivam necessariamente da mesma fonte; fazem corpo com o fundo e não podem se explicar senão por ele. E, ao mesmo tempo que remontam, por uma geração tão lógica, aos depositários primitivos da religião druídica, é impossível lhes assinalar algum outro ponto de partida; porque, fora da influência druídica, o país do qual provêm não conheceu senão a influência cristã, que é inteiramente estranha a tais doutrinas.
"Os desenvolvimentos contidos nas tríades, estão mesmo tão perfeitamente fora do Cristianismo que o pouco de emoções cristãs, que escapam aqui e ali, em seu conjunto se distinguem do fundo primitivo à primeira vista. Essas emanações, ingenuamente saídas da consciência dos bardos cristãos, puderam, se assim se pode dizer, se intercalar nos interstícios da tradição, mas não puderam nela se fundir. A análise do texto é, pois, tão simples quanto rigorosa, uma vez que pode se reduzir em se apartar tudo o que traz a marca do Cristianismo, e, uma vez operada a triagem, deve-se considerar como de origem druídica tudo o que ficar visivelmente caracterizado por uma religião diferente da do Evangelho e dos concilies. Assim, para não citar senão o essencial, partindo desse princípio bastante conhecido de que o dogma da caridade, em Deus e nos homens, é tão especial ao Cristianismo quanto o da migração das almas o é ao antigo druidismo, um certo número de tríades, nas quais respire um espírito de amor que a Gaule primitiva jamais conheceu, se trairiam imediatamente como sinais de um caráter comparativamente moderno; ao passo que as outras, animadas por um sopro diferente, deixam ver tanto melhor a marca da alta antigüidade que as distingue.
"Enfim, não é inútil fazer observar que a própria forma do ensinamento contido nas tríades é de origem druídica. Sabe-se que os druidas tinham uma predileção particular pelo número três, e o empregavam especialmente, assim como no-lo mostram a maioria dos monumentos gauleses, para a transmissão de suas lições que, mediante essa forma precisa, se gravavam mais facilmente na memória. Diogène Laérce nos conservou uma dessas tríades que resume, sucintamente, o conjunto dos deveres do homem para com a Divindade, para com seus semelhantes e para consigo mesmo: "Honrar os seres superiores, não cometer injustiça, e cultivar em si a virtude viril." A literatura dos bardos propagou, até nós, uma multidão de aforismos do mesmo gênero, tocando todos os ramos do saber humano: ciência, história, moral, direito, poesia. Não há de mais interessantes nem de mais próprias para inspirarem grandes reflexões do que aquelas das quais aqui publicamos o texto, segundo a tradução que foi feita pelo senhor Adolphe Pictet.
"Dessa série de tríades, as onze primeiras estão consagradas à exposição dos atributos característicos da Divindade. Foi nessa seção que as influências cristãs, como era fácil de se prever, tiveram maior ação. Se não se pode negar que o druidismo tenha conhecido o princípio da unidade de Deus, pode ser mesmo que, em conseqüência de sua predileção pelo número ternário, pôde se elevar a conceber, confusamente, alguma coisa da divina triplicidade; todavia, é incontestável de que o que completa essa alta concepção teológica - saber a distinção das pessoas e particularmente da terceira - deveu restar perfeitamente estranho a essa antiga religião. Tudo concorda em provar que os seus sectários estavam muito mais preocupados em estabelecer a liberdade do homem, do que em estabelecer a caridade; e foi mesmo em conseqüência dessa falsa posição de seu ponto de partida que pereceu. Também parece permitido se relacionar a uma influência cristã, mais ou menos determinada, todo esse início, principalmente a partir da quinta tríade.
"Em seguida aos princípios gerais, relativos à natureza de Deus, o texto passa a expor a constituição do Universo. O conjunto dessa constituição está superiormente formulado em três tríades que, mostrando os seres particulares em uma ordem absolutamente diferente da de Deus, completam a idéia que se deve formar do Ser único e imutável. Sob formas mais explícitas, essas tríades não fazem, de resto, senão o que já se sabia pelos testemunhos dos Antigos, da doutrina sobre a circulação das almas passando, alternativamente, da vida para a morte e da morte para a vida. Pode-se considerá-las como o comentário de um verso célebre da Pharsale, na qual o poeta se exclama, dirigindo-se aos sacerdotes da Gaule, que, se o que ensinam é verdadeiro, a morte não é senão o meio de uma longa vida: Longae vitae mors media est.

DEUS E O UNIVERSO

I. - Há três unidades primitivas, e de cada uma delas não se poderia ter senão uma só: um Deus, uma verdade, um ponto de liberdade, quer dizer, o ponto onde se encontra o equilíbrio de toda a oposição.
II. - Três coisas procedem de três unidades primitivas: toda vida, todo bem e todo poder.
III. - Deus é, necessariamente, três coisas, a saber: a maior parte da vida, a maior parte da ciência, e a maior parte do poder; e não poderia ter uma maior parte de cada coisa.
IV. - Três coisas que Deus não pode não ser: o que deve constituir o bem perfeito, o que deve querer o bem perfeito, e o que deve cumprir o bem perfeito.
V. - Três garantias daquilo que Deus fez e fará: seu poder infinito, sua sabedoria infinita, seu amor infinito; porque não há nada que não possa ser efetuado, que não possa se tornar verdadeiro, e que não possa ser desejado por um atributo.
VI. - Três fins principais da obra de Deus, como criador de todas as coisas: diminuir o mal, reforçar o bem, e pôr em evidência toda diferença; de tal sorte que se possa saber o que deve ser, ou, ao contrário, o que não deve ser.
VII. - Três coisas que Deus não pode não conceder: o que há de mais vantajoso, o que há de mais necessário, e o que há de mais belo para cada coisa.
VIII. - Três poderes da existência: não poder ser de outro modo, não ser necessariamente outro, não poder ser melhor pela concepção; e é nisso que está a perfeição de toda coisa.
IX. - Três coisas prevalecerão necessariamente: o supremo poder, a suprema inteligência, e o supremo amor de Deus.
X. - As três grandezas de Deus: vida perfeita, ciência perfeita, poder perfeito.
XI. - Três causas originais dos seres vivos: o amor divino de acordo com a suprema inteligência, a sabedoria suprema pelo conhecimento perfeito de todos os meios, e o poder divino de acordo com a vontade, o amor e a sabedoria de Deus.

OS TRÊS CÍRCULOS

XII. - Há três círculos da existência: o círculo da região vazia (ceugant), onde, exceto Deus, não há nada de vivo, nem de morto, e nenhum ser que Deus não possa atravessá-lo; o círculo da migração (abred), onde todo ser animado procede da morte, e o homem o atravessou; e o círculo da felicidade (gwynfyd), onde todo ser animado procede da vida, e o homem o atravessará no céu.
XIII. - Três estados sucessivos de seres animados: o estado de descida no abismo (annoufn), o estado de liberdade na humanidade, e o estado de felicidade no céu.
XIV. - Três fases necessárias de toda existência com relação à vida: o começo em annoufn, a transmigração em abred, e a plenitude em gwynfyd; e sem essas três coisas ninguém pode existir, exceto Deus.
"Assim, em resumo, sobre esse ponto capital da teologia cristã, de que Deus, pelo seu poder criador, tira as almas do nada, as tríades não se pronunciam de modo preciso. Depois de mostrarem Deus em sua esfera eterna e inacessível, mostram simplesmente as almas nascendo no fundo do Universo, no abismo (annoufn); daí, essas almas passam no círculo de migrações (abred), onde seu destino se determina através de uma série de existências, conforme o uso bom ou mau que fizerem da sua liberdade; enfim, elas se elevam ao círculo supremo (gwynfyd), onde as migrações cessam, onde não se morre mais, onde a vida se passa doravante na felicidade, conservando em tudo sua atividade perpétua e a plena consciência da sua individualidade. É preciso, para isso, com efeito, que o druidismo caia no erro das teologias orientais, que conduzem o homem a se absorverem finalmente no seio imutável da Divindade; porque distingue, ao contrário, um círculo especial, o círculo do vazio ou do infinito (ceugant), que forma o privilégio incomunicável do Ser supremo, e no qual nenhum ser, qualquer que seja o seu grau de santidade, jamais é admitido penetrar. É o ponto mais elevado da religião, porque marca o limite colocado ao vôo das criaturas.
"O traço mais característico dessa teologia, se bem que seja um traço puramente negativo, consiste na ausência de um círculo particular, tal qual o Tártaro da antigüidade paga, destinado à punição sem fim das almas criminosas. Entre os druidas, o inferno propriamente dito não existe. A distribuição dos castigos se efetua, aos seus olhos, no círculo das migrações pelo compromisso das almas em condições de existência mais ou menos infelizes, onde, sempre senhoras da sua liberdade, expiam suas faltas pelo sofrimento, e se dispõem, pela reforma dos seus vícios, a um futuro melhor. Em certos casos, pode mesmo ocorrer que as almas retrocedam até aquela região de annoufn, onde tomam nascimento, e à qual não parece muito possível dar outra significação que a da animalidade. Por esse lado perigoso (a retrogradação), e que nada justifica, uma vez que a diversidade das condições de existência no círculo da humanidade, basta perfeitamente à penalidade de todos os graus, o druidismo teria, pois, chegado a deslizar até à metempsicose. Mas esse extremismo deplorável, ao qual não conduz nenhuma necessidade da doutrina do desenvolvimento das almas pelo caminho de migrações,parece, como se julgará pela seqüência das tríades relativas ao regime do círculo de abred, não ter ocupado, no sistema da religião, senão um lugar secundário.
"À parte algumas obscuridades, que se prendem talvez às dificuldades de uma língua cujas profundezas metafísicas não nos são ainda bem conhecidas, as declarações das tríades, tocando as condições inerentes ao círculo de abred, derramam as mais vivas luzes sobre o conjunto da religião druídica. Nela se sente respirar o sopro de uma originalidade superior. O mistério que oferece à nossa inteligência o espetáculo da nossa existência presente, nela toma um jeito singular que não se vê em nenhuma parte, e se diria que um grande véu se rasgando, adiante e atrás da vida, a alma se sente, de repente, nadar, com uma força inesperada, através de uma extensão indefinida que, em seu cativeiro entre as portas espessas do nascimento e da morte, ela não era capaz de supor por si mesma. A qualquer julgamento que se detenha, sobre a verdade dessa doutrina, não se pode deixar de convir que não seja uma doutrina poderosa; e, refletindo no efeito que devia, inevitavelmente, produzir sobre as almas inocentes tais aberturas sobre a sua origem e o seu destino, é fácil se dar conta da imensa influência que os druidas, naturalmente, haviam adquirido sobre os espíritos de nossos pais. No meio das trevas da antigüidade, esses ministros sacros não podiam deixar de aparecer, aos olhos das populações, como os reveladores do céu e da terra.
"Eis o texto notável, do qual se trata:

O CÍRCULO DE ABRED

XV. - Três coisas necessárias no círculo de abred: o menor grau possível de toda a vida, e daí seu começo; a matéria de todas as coisas, e daí o crescimento progressivo, o qual não pode se operar senão no estado de necessidade; e a formação de todas as coisas da morte, e daí a debilidade das existências.
XVI. - Três coisas nas quais todo ser vivo participa, necessariamente, pela justiça de Deus: o socorro de Deus em abred, porque sem isso ninguém não poderia conhecer nenhuma coisa; o privilégio de ter parte no amor de Deus; e o acordo com Deus quanto ao cumprimento pelo poder de Deus, tanto quanto for justo e misericordioso.
XVII. - Três causas da necessidade do círculo de abred: o desenvolvimento da substância material de todo ser animado; o desenvolvimento do conhecimento de toda coisa; e o desenvolvimento da força moral .para superar todo contrário e Cythraul (o mau Espírito) e para se livrar de Droug (o mal). E sem essa transição de cada estado de vida, não poderia isso ter cumprimento por nenhum ser.
XVIII. - Três calamidades primitivas de abred: a necessidade, a ausência de memória, e a morte.
XIX. - Três condições necessárias para se chegar à plenitude da ciência: transmigrar em abred, transmigrar em gwynfyd, e recordar-se de todas as coisas passadas, até em annoufn.
XX. - Três coisas indispensáveis no círculo de abred: a transgressão da lei, porque isso não pode ser de outro modo; libertação pela morte, diante de Droug Cythraul; o crescimento da vida e do bem pelo afastamento de Droug na libertação da morte; e isso pelo amor de Deus que abarca todas as coisas.
XXI. - Três meios eficazes de Deus em abred, para dominar Droug Cythraul e superar sua oposição com relação ao círculo de gwynfyd: a necessidade, a perda da memória e a morte.
XXII. - Três coisas são primitivamente contemporâneas: o homem, a liberdade e a luz.
XXIII. - Três coisas necessárias para o triunfo do homem sobre o mal: a firmeza contra a dor, a transformação, a liberdade de escolher; e com o poder que tem o homem de escolher, não se pode saber, antecipadamente, com certeza onde irá.
XXIV. - Três alternativas oferecidas ao homem: abred e gwynfyd, necessidade e liberdade, mal e bem; o todo em equilíbrio, o homem pode, à vontade, se ligar a um ou ao outro.
XXV. - Por três coisas o homem cai sob a necessidade de abred: pela ausência de esforço até o conhecimento, pelo desapego ao bem, pelo apego ao mal. Em conseqüência dessas coisas, desce em abredaté seu análogo, e recomeça o curso da sua transmigração.
XXVI. - Por três coisas o homem desce de novo, necessariamente, em abred, se bem que, a todo outro respeito esteja ligado ao que é bom: pelo orgulho, cai até annoufn: pela falsidade, até o ponto de demérito equivalente, e pela crueldade, até o grau correspondente de animalidade. Daí transmigra de novo para a humanidade, como antes.
XXVII. - As três coisas principais para se obter no estado de humanidade: a ciência, o amor, a força moral, no mais alto grau possível de desenvolvimento, antes que sobrevenha a morte. Isso não pode ser obtido anteriormente ao estado de humanidade, e não pode ser senão pelo privilégio da liberdade e da escolha. Essas três coisas são chamadas de três vitórias.
XXVIII. - Há três vitórias sobre Croug Cythraul: a ciência, o amor, e a força moral; porque o saber, o querer e o poder, cumprem o que quer que seja em sua conexão com as coisas. Essas três vitórias começam na condição de humanidade e continuam eternamente.
XXIX. - Três privilégios da condição do homem: o equilíbrio do bem e do mal, e daí a faculdade de comparar; a liberdade na escolha, e daí o julgamento e a preferência; e o desenvolvimento da força moral, em conseqüência do julgamento, e daí a preferência. Essas três coisas são necessárias para cumprir o que quer que seja.
"Assim, em resumo, o início dos seres no seio do Universo ocorre no ponto mais baixo da escala da vida; e se não é levar muito longe as conseqüências da declaração contida na vigésima-sexta tríada, pode-se conjecturar que, na doutrina druídica, esse ponto inicial está considerado como situado no abismo confuso e misterioso da animalidade. Daí, por conseqüência, desde a própria origem da história da alma, há necessidade lógica do progresso, uma vez que os seres não estão destinados por Deus para demorarem numa condição tão baixa e tão obscura. Entretanto, nos estágios inferiores do Universo, esse progresso não se desenrola seguindo uma linha contínua; essa longa existência, nascida tão baixo para se elevar tão alto, se quebra em fragmentos, solidários no fundo da sua sucessão, mas do qual, graças ao defeito de memória, a misteriosa solidariedade escapa, ao menos por um tempo, à consciência do indivíduo. São as interrupções periódicas no curso secular da vida, que constituem o que chamamos a morte; de sorte que a morte e o nascimento que, por uma consideração superficial, formam acontecimentos tão diferentes, não são, em realidade, senão as duas faces do mesmo fenômeno, uma voltando para o período que se acaba, a outra para o período que se segue.
"Desde então a morte, considerada em si mesma, não é, pois, uma calamidade verdadeira, mas um benefício de Deus, que, rompendo os hábitos muito estreitos que havíamos contraído com nossa vida presente, nos transporta em novas condições e dá lugar, por aí, para nos elevarmos mais livremente a novos progressos.
"Do mesmo modo que a morte, a perda de memória que a acompanha não deve ser tomada não mais que por um benefício. É uma conseqüência do primeiro ponto; porque se a alma, no curso dessa longa vida, conservasse claramente essas lembranças de um período a outro, a interrupção não seria mais do que acidental, e não haveria, propriamente dito, nem morte, nem nascimento, uma vez que esses dois acontecimentos perderiam, desde então, o cará ter absoluto que os distingue e faz a sua força. E mesmo, não parece difícil perceber diretamente, tomando o ponto de vista dessa teologia, em que a perda da memória, no que toca aos períodos passados, pode ser considerada como um benefício relativamente ao homem, em sua condição presente; porque se esses períodos passados, como a posição atual do homem em um mundo de sofrimento se lhe torna a prova, foram infelizmente manchados de erros e de crimes, causa primeira das misérias e das expiações de hoje, é, evidentemente, uma vantagem para a alma de se encontrar descarregada da visão duma tão grande multidão de faltas e, ao mesmo tempo, de 'remorsos muito acabrunhantes que delas se originam. Não o obrigando a um arrependimento formal senão relativamente às culpas da sua vida atual, compadecendo-se, assim, de sua fraqueza, Deus lhe concede, efetivamente, uma grande graça.
"Enfim, segundo esse mesmo modo de considerar o mistério da vida, as necessidades de todas as naturezas às quais estamos sujeitos neste mundo, e que, desde o nosso nascimento, determinam, por uma sentença por assim dizer fatal, forma da nossa existência no presente período, constituem um último benefício tão bastante sensível quanto os outros dois; porque são, em definitivo, essas necessidades que dão, à nossa vida, o caráter que melhor convém às nossas expiações e às nossas provas e, por conseguinte, ao nosso desenvolvimento moral; e são também essas mesmas necessidades, seja de nossa organização física, seja de circunstâncias exteriores ao meio no qual estamos colocados, que, em nos conduzindo forçosamente ao termo da morte, nos conduzem, por isso mesmo, à nossa suprema libertação. Em resumo, como dizem as tríades em sua enérgica concisão, está aí todo o conjunto e as três calamidades primitivas, e os três meios eficazes de Deus em abred.
"Entretanto, mediante qual conduta a alma se eleva, realmente, nesta vida, e merece alcançar, depois da morte, um mundo superior de existência? A resposta que o Cristianismo dá a essa questão fundamental é conhecida de todos: é sob a condição de desfazer, em si, o egoísmo e o orgulho, de desenvolver, na intimidade da sua substância, as forças da humildade e da caridade, únicas eficazes, únicas meritórias diante de Deus: Bem-aventurados os brandos, disse o Evangelho, bem-aventurados os humildes! A resposta do druidismo é bem diferente, e contrasta claramente com esta. Segundo suas lições, a alma se eleva na escala das existências sob a condição de fortificar, pelo seu trabalho, sobre ela mesma, sua própria personalidade, e é um resultado que ela obtém naturalmente, pelo desenvolvimento da força do caráter junto ao desenvolvimento do saber. É o que exprime a vigésima-quinta tríade, que declara que a alma cai na necessidade de transmigrações, quer dizer, em vidas confusas e mortais, não somente pela manutenção de más paixões, mas pelo hábito da frouxidão no cumprimento de ações justas, pela falta de firmeza na adesão ao que prescreve a consciência, em uma palavra, pela fraqueza de caráter; além desse defeito de virtude moral, a alma está ainda retida, em seu vôo para o céu, por falta do aperfeiçoamento do Espírito. A iluminação intelectual, necessária para a plenitude da felicidade, não se opera simplesmente, na alma bem-aventurada, por uma irradiação nela, do alto, toda gratuita; ela não se produz na vida celeste se a alma, ela mesma, não soube fazer esforços nesta vida para adquiri-la. Também a tríade não fala unicamente da falta de saber, mas da falta de esforços para saber, o que é, no fundo, como para a precedente virtude, um preceito de atividade e de movimento.
"Em verdade, nas tríades seguintes, a caridade se encontra recomendada, no mesmo título que a ciência e a força moral; mas aqui ainda, como ao que toca à natureza divina, a influência do Cristianismo é sensível. É a ele, e não à forte mas dura religião dos nossos pais, que pertence a pregação e a intronização, no mundo, da lei da caridade em Deus e no homem; e se essa lei brilha nas tríades, é por uma aliança com o Evangelho, ou, por melhor dizer, por um feliz aperfeiçoamento da teologia dos druidas pela ação da dos apóstolos, e não por uma tradição primitiva. Retiremos esse divino raio, e teremos, na sua rude grandeza, a moral da Gaule, moral que pôde produzir, na ordem do heroísmo e da ciência, poderosas personalidades, mas que não soube uni-las entre si com a multidão dos humildes (1). (1) Extraído do Magasin pittoresque, 1857.
A Doutrina Espírita não consiste somente na crença das manifestações dos Espíritos, mas em tudo o que nos ensinam sobre a natureza e o destino da alma. Se, pois, se quiser se reportar aos preceitos contidos em O Livro dos Espíritos, onde se encontra formulado todo o seu ensinamento, impressionar-se-á com a identidade de alguns princípios fundamentais com os da doutrina druídica, dos quais um dos mais salientes e sem contradita, é o da reencarnação. Nos três círculos, nos três estados sucessivos dos seres animados, encontramos todas as fases que apresenta a nossa escala espírita. O que é, com efeito, o círculo de abred ou da migração, senão as duas ordens de Espíritos que se depuram em suas existências sucessivas? No círculo de gwynfyd, o homem não transmigra mais, goza da suprema felicidade. Não é a primeira ordem da escala, a dos Espíritos que, tendo cumprido todas as provas, não têm mais necessidade de encanação e gozam da vida eterna? Anotemos, ainda, que, segundo a doutrina druídica, o homem conserva o seu livre arbítrio; se eleva gradualmente pela sua vontade, sua perfeição progressiva e as provas que suporta, de annoufn ou abismo, até a perfeita felicidade emgwynfyd, com a diferença, no entanto, de que o druidismo admite o retorno possível nas classes inferiores, ao passo que, segundo o Espiritismo, o Espírito pode permanecer estacionário, mas não pode degenerar. Para completar a analogia, teríamos que acrescentar à nossa escala, abaixo da terceira ordem, o círculo de annoufn, por caracterizar o abismo ou origem, desconhecida das almas, e, acima da primeira ordem, o círculo de ceugant, morada de Deus, inacessível às criaturas. O quadro seguinte torna essa comparação mais sensível.

ESCALA ESPÍRITA

ESCALA ESPÍRITAESCALA DRUÍDICA
 CeugantMorada de Deus
1ª Ordem1ª classePuros Espíritos
(Sem reencarnação)
 GwynlydMorada dos Bem-Aventurados.
Vida Eterna
2ª Ordem
Bons Espíritos
2ª classeEspíritos SuperioresDepuram-se
e se elevam
pelas provas
da
reencarnação
AbredCírculos das migrações ou das diferentes existências corporais que as almas percorrem para chegarem de Annoufn em Gwynlyd
3ª classeEspíritos Sábios
4ª classeEspíritos Cultos
5ª classeEspíritos Benevolentes
3ª Ordem
Espíritos Imperfeitos
6ª classeEspíritos Neutros
7ª classeEspíritos Pseudo-sábios
8ª classeEspíritos Levianos
9ª classeEspíritos Impuros
 Annoufnabismo; ponto de partida das almas.