domingo, 22 de outubro de 2017

Por que o Espiritismo não está na ciência mainstream?




Para responder plenamente a esta questão, precisaríamos de muito mais de que um texto de blog. Fiz isso em parte na minha tese de doutorado, na USP, sobre Pedagogia Espírita (depois publicada como Pedagogia Espírita, um projeto brasileiro e suas raízes), mas como nem todos leram esse trabalho e como recentemente esse debate veio à tona por causa de um vídeo de três minutos de Pondé, onde ele faz uma rápida, superficial e descolada apreciação do espiritismo, resolvi escrever algo a respeito.

O que primeiro deve ser dito é que a possível consistência filosófica e científica do espiritismo ficou embaçada pelo movimento religioso que se criou no Brasil, bastante afastado da racionalidade e do método de análise crítica que propunha Kardec, na abordagem dos fenômenos mediúnicos. É preciso um esforço de escavação do pensamento espírita original, de uma leitura bem feita dos que sucederam Kardec, com pesquisas sérias no final do século XIX e início do século XX e depois acompanharmos o que tem sido intermitentemente pesquisado a partir da segunda metade do século XX até nossos dias – para nos pronunciarmos a respeito da questão proposta.

Não, Kardec não era um autor positivista à moda de Augusto Comte. Em nenhum sentido. O positivismo do século XIX era um cientificismo, que pretendia abarcar toda a realidade pela ciência, partindo aliás de pressupostos filosóficos materialistas. Demonstrei em minha tese que Kardec justamente faz a crítica desse discurso cientificista e reducionista e sua concepção de ciência se aproxima muito mais de teóricos contemporâneos como Thomas Kuhn, por exemplo. Isso porque ele reconhecia que não há ciência sem articulação filosófica, como vários filósofos da ciência apontariam no século XX. Ele também não é positivista, porque o positivismo queria a morte da filosofia, a morte da ideia de transcendência humana e Augusto Comte jamais fez uma pesquisa empírica. Ele era um teórico. Inventou uma narrativa cientificista e uma religião sem espiritualidade e sem Deus, de que ele era o supremo sacerdote. Uma figura excêntrica e considerada medíocre pelos pensadores contemporâneos. A tentativa, portanto, de classificar o espiritismo de positivista é uma simplificação ingênua ou de má fé, porque se trata de colocar Kardec nesse rol pretensiosamente pseudocientífico de que Comte é um dos representantes mais conhecidos.

O que Kardec propôs, e realizou, foi uma nova abordagem metodológica para compreender fenômenos que sempre estiveram presentes na história da humanidade: percepções extra-sensoriais, comunicações de pessoas que já haviam morrido e lembranças de vidas passadas. Já na Grécia antiga temos diversas manifestações desse gênero, como as recordações que Pitágoras e Sócrates tinham de outras existências, como a ideia de reencarnação em Platão ou ainda histórias de visitas espirituais nos clássicos da literatura grega, como Ilíada e Odisseia. Isso apenas para citar os gregos, sem mencionar toda a história do pensamento humano, no Oriente e no Ocidente. Segundo uma minuciosa pesquisa feita pelo antropólogo de Sri Lanka Gananath Obeyesekere, Imagining Karma: Ethical Transformation in Amerindian, Buddhist, and Greek Rebirth, a mais universal das ideias a respeito da vida pós-morte é a reencarnação e ela aparece em todas as culturas dos cinco continentes, sem que tenha havido influências e trocas entre elas.

A universalidade de uma ideia não atesta a sua verdade, mas pelo menos nos chama a atenção para uma análise respeitosa. A questão é que além dessa universalidade e antiguidade tanto da ideia da reencarnação, como da comunicação com os espíritos – ambas atestando a imortalidade da alma – desde o tempo de Kardec até hoje, há pesquisadores comprometidos com métodos rigorosos de análise dos dados, que vêm se debruçando sobre isso. E depois de Kardec, a maioria dos que pesquisaram não estavam ligados e às vezes nem tinham conhecimento do espiritismo, muito menos desse espiritismo religioso e acrítico que se estabeleceu no movimento brasileiro.

No meu ponto de vista, a mais consistente pesquisa que vem confirmando a teoria da reencarnação, proposta por Kardec, é a de Ian Stevenson e de seus associados e sucessores. Mais de 2500 casos de recordações espontâneas de crianças a respeito de supostas vidas passadas, observadas com metodologia bastante rigorosa, incluindo os casos com marcas de nascença, não explicáveis pela hereditariedade, mas que correspondem exatamente à causa da morte da personalidade anterior, que a criança diz ter sido, cuja comprovação é encontrada no atestado de óbito e na autópsia da dita personalidade…

Fenômenos de quase-morte, de poltergeist, de telepatia, de clarividência… tudo já foi objeto de pesquisas sérias com resultados de evidências bastante promissoras, que nos levam às mesmas conclusões que Kardec, no século XIX, que tinha suas limitações do momento histórico, para uma pesquisa com o rigor que podemos desenvolver hoje.

Eu mesma participei, como médium analisada, de uma interessante pesquisa liderada por Julio Peres, doutor em Neurociências, pela USP, Alexander Moreira-Almeida, doutor em Medicina pela USP e por Andrew Newberg, doutor e pesquisador norte-americano especializado em neuroimagem, na Universidade de Pensilvania. (Ver artigo publicado a respeito).

Por que mesmo então o espiritismo não está na ciência mainstream? Ora, porque essas evidências ferem paradigmas muito arraigados, então é preciso negá-las, afastá-las, fechar os olhos e ridicularizá-las. Elas ferem tanto o paradigma materialista reinante nas universidades, que é um paradigma puramente ideológico, como fere o fundamentalismo das religiões institucionais, que ficam apavoradas com o desvendar da vida pós-morte como algo natural, o que lhes tiraria completamente a função de mediadoras, que controlam o pedágio para o céu.

A ideia da reencarnação implica numa moralidade que os materialistas não querem aceitar, no seu relativismo ético e implica numa emancipação do indivíduo como dono espiritual de si mesmo, que as religiões institucionais tampouco querem integrar em sua visão do Além.

Além disso, sabemos hoje – Noam Chomski e outros denunciam isso de forma bastante convincente – o quanto a ciência atende a interesses econômicos, militaristas, de facções. Então nem sempre (ou raramente?) há isenção na chamada ciência mainstream. Foi essa aliás, uma das boas contribuições que Thomas Kuhn deu à filosofia da ciência, mostrando que os paradigmas de uma determinada comunidade científica não são compostos apenas de evidências, mas de visões de mundo, que são sociais, históricas, subjetivas…

Os espíritas brasileiros, com seu discurso fechado, em sua maioria com uma visão estreita, também não contribuíram para o espiritismo sair do seu gueto e alcançar a universidade – mas esse é um fato que está sendo revertido, porque pesquisadores sérios como os citados acima e outros, que fazem parte de grupos de pesquisa no Brasil e lá fora, vieram do movimento espírita, mas se desfizeram das amarras meramente religiosas e estão se dedicando a abrir novas trilhas de abordagem metodológica de fenômenos, que evidenciam que sobrevivemos à morte e que o Espírito é imortal. Eles dão as mãos a outros pesquisadores, que não vieram da comunidade espírita, mas estão também comprometidos com essa descoberta do Espírito. A verdade não é espírita, budista, católica ou ateia: ela é apenas a verdade, objetiva, palpável e pode oferecer evidências, se quisermos vê-las.

Fonte: ABPE

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