domingo, 3 de dezembro de 2017

Coração, aparência e coerência religiosa: quando a prática se distancia da essência



“E disse-lhes: Por que estais dormindo? Levantai-vos e orai, para que não entreis em tentação.”

(Lucas, 22:46.)


Dos quatros Evangelhos considerados canônicos, o terceiro deles, assinado por Lucas é o único que traz um pouco mais sobre as figuras femininas que acompanhavam Jesus. Estudiosos consideram que somente o gentio teria dedicado espaço significativo a elas porque, diferente dos hebreus, não comungava com a ideia de que mulheres seriam inferiores aos homens, tampouco impuras, como prega a Torá (Antigo Testamento).

Lucas, nascido em Antióquia, filho de um ex-escravo de nome Enéas, formou-se em Alexandria como médico e cuidava principalmente de pobres e escravos, dedicando sua vida ao apostolado do amor. Segundo seus biógrafos, quando ouviu falar sobre Jesus e seus ensinamentos, decidiu ir até a Judéia para conhecê-lo, porém o Mestre Galileu já havia sido crucificado. Pouco tempo depois, foi conversar com sua mãe, Maria, escutando-a com atenção e respeito (atitude curiosa, já que naquela época, naquele povo, só a palavra do homem era considerada digna de ser validada).

Desta entrevista junto à mãe de Jesus (e mais alguns relatos de outros evangelistas) nasceu o maior de todos os Evangelhos. Esses dados circulam pela tradição, mas não têm comprovação histórica.

Mas, nos textos de Lucas, encontramos um grego mais rebuscado, com termos médicos da época e, curiosamente, em diversos trechos certo cuidado ético ao intercalar histórias que falam sobre a ajuda do Cristo a um homem para, em seguida, destacar sobre o apoio que ele deu a uma mulher.

Lucas hoje é considerado “o evangelista das mulheres”, mas não só: teve um olhar mais amoroso com relação a Jesus, trazendo um mestre cheio de misericórdia e amor, que universaliza a “salvação” (possível a todos, fossem pobres, aleijados, ricos, homens, mulheres ou crianças), falando sobre um Deus Pai que cuida de todos os seres viventes e não somente de um povo escolhido.

Aliás, a figura de Maria de Magdala, presente em seus escritos, nos convida a uma compreensão da mensagem do Cristo a partir de um olhar distituído de qualquer preconceito, fosse ele social, racial, étnico, religioso ou de gênero. Para o Rabi de Nazaré, eram justamente os excluídos, os maginalizados pela sociedade, que deveriam receber um cuidado especial, um acolhimento capaz de retirá-los de sua situação de vulnerabilidade.

Mesmo nos outros Evangelhos, verdade é que, quando buscamos a essência da mensagem cristã, encontramos um achatamento, um rebaixamento do ego para o florescer da alma imortal – nossa parte mais sagrada, essencial.

E é neste ponto que peço licença para explicar um pouco sobre o conceito de ego (tão bem descrito por Freud), já que ele ainda está na base de tudo o que fazemos neste mundo.

Ego diz respeito principalmente às nossas relações com o meio e conosco mesmo. Trata-se de uma maneira de ser e existir em determinada cultura, dentro de um tempo histórico. O ego possui partes conscientes, algumas semiconscientes e outras inconscientes. Usa máscaras, cria discursos defensivos, buscando encobrir aspectos mais difíceis – o lado mais agressivo ou maldoso (muita vez totalmente inconsciente) e, ao mesmo tempo busca atuar no mundo de forma socialmente aceita, levando em conta as leis e regras sociais (enraizadas em nós e conhecidas como superego) para que possa ser reconhecido como um ser digno de amor (esta é nossa busca central).

Portanto, o ego tenta dar conta das carências arcaicas, da baixa autoestima.

Em pessoas nas quais o bem já brota de forma natural (alma já educada para o amor), nas que reconhecem seus problemas, aceitando-os e encarando-os como parte da jornada evolutiva, as defesas do ego são mais reduzidas.

Voltando aos Evangelhos, recordo que, quando questionado pelos religiosos da época sobre o descuido de seus discípulos com a higiene (está nos textos sagrados que deveriam lavar as mãos antes das refeições), Jesus retruca dizendo que o problema não estaria na aparência (no corpo), mas no que levamos em nossos corações (a boca fala do que está cheio o coração). Em outra passagem, conta uma parábola sobre um respeitável religioso que estaria orando em voz alta no templo, dizendo de suas magníficas qualidades a Deus, bradando ser muito melhor que um outro homem, que ali estava: um cobrador de impostos, considerado pecador, que também orava, porém humilde, em voz baixa, falando ao Pai Celeste sobre suas mazelas íntimas.

Em seguida, Jesus diz que a prece do segundo fora digna de ser escutada por Deus porque vinha da verdade e da boa intenção, enquanto que a hipocrisia daquele que se vestia de santidade de nada valeria para o Pai. Traduzindo: o inconsciente doutor da Lei estava mais distante do necessário, por encobrir suas dificuldades humanas que o publicano, coerente consigo mesmo, portanto mais próximo da mudança necessária.

O ego defensivo dele projetava em cima do outro aquilo que não suportava em si mesmo (todos temos alguma dificuldade íntima a resolver).

Regra básica que Jesus obviamente conhecia: só podemos mudar aquilo que já reconhecemos em nós.

Aliás, o Mestre buscou diminuir o valor do ego, focando nas questões da alma. Pedia, em suas parábolas e conversas, que deixássemos de tentar aparentar aquilo que não somos para nos darmos conta do nosso eu real, buscando melhorar aquilo que prejudica a nós e aos outros.

Há dois mil anos, a mensagem foi basicamente esta.

Uma proposta de um socialismo sem armas, com equanimidade, apoio, amor.

Nada de exclusões, ditaduras ou opressões.

Que reconhecêssemos e retirássemos do nosso ego o orgulho e o egoísmo…

Agora falemos um pouco sobre prática humana.

Na atualidade, com as discussões sobre as questões de gênero, causa-nos estranheza quando lemos ou escutamos opiniões que parecem vir de algum personagem hebreu de três mil anos atrás. Por exemplo, quando dizem que a mulher foi estuprada por conta da sua saia curta ou que a criança foi molestada pelo adulto por conta de seu “jeitinho sedutor”. Um machismo enraizado nos porões do inconsciente coletivo que deve ser olhado (trazido ao consciente) para, por fim, ser extirpado da cultura.

Nos templos religiosos que ainda não absorveram as propostas de reforma de Jesus vemos áreas reservadas aos homens e outras para mulheres, para que estas não os “distraiam”, pois precisam concentrar-se no culto.

As vestimentas femininas devem ser recatadas, de preferência com o uso de véus, saias longas e nenhum decote. Cores vibrantes e estampas muito alegres também não são bem vindas. A aparência da austeridade deve estar presente.

Encontrar isto em templos cuja filosofia se apoia principalmente no antigo testamento, parece menos estranho do que quando ficamos sabendo de Centros Espíritas que buscam regulamentar as vestes das pessoas, principalmente de mulheres.

Faz um tempo, conheci uma pessoa que, devido a uma depressão severa esteve à beira da morte por meses e que, graças a tratamento médico, psicológico e espiritual está conseguindo se reerguer, embora ainda com momentos de fragilidade psíquica.

Disse-me ela que estar no Centro Espírita tem-lhe feito enorme bem, pois se sente pertencente a um grupo familiar (esta pessoa não tem mais os pais, mora sozinha), que lá encontra reconforto, paz. Porém, há alguns dias esta mulher foi chamada para uma conversa na sala de atendimento fraterno do lugar. O assunto? Suas vestes. Não deveria usar saia curta nem bermudas quando fosse assistir palestras, pois estavam percebendo que os homens a estavam olhando demais e isso estaria atrapalhando o clima psíquico da Casa.

Quando me contou o fato estava em lágrimas, dizendo que jamais pensou em seduzir alguém com suas roupas, que ficava totalmente focada nas palavras que eram ditas pelos palestrantes e professores. Confessou se sentir ofendida, perguntando a si mesma se voltaria ao lugar, já que engordara mais de vinte kilos depois do seu processo, perdendo muitas roupas (inclusive todas as suas calças compridas), não possuindo dinheiro para novas.

Decidiu, então, enviar uma carta para a pessoa que a procurou, falando sobre como se sentia. Sua estratégia foi positiva, pois a diretora do lugar reconheceu o disparate da situação, voltando atrás no que disse, desculpando-se. Fiquei feliz com o desfecho e penso que todos aprendemos um pouco com o fato, principalmente os responsáveis pelo local. Ademais, ela continuará frequemtando a Casa, o que achei ótimo, já que lá ela se sente tão bem!

O que acontece é que, quando soube do caso, me lembrei de um outro que acontecera comigo, numa Casa Espírita na qual fui palestrar. Quem me conhece sabe que gosto de acessórios grandes, brincos pendurados, colares e anéis. Embora sejam bijuterias de pouco valor, podem parecer ser mais que isso, é verdade. Porém, não vem ao caso e mesmo que fossem, estaria este assunto dentro das minhas jurisdições pessoais, pois que não agrido ninguém à minha volta com isso.

Naquela manhã de trabalho, estava eu bem vestida, com batom, brincos grandes, sapato novo e uma blusa de seda que ganhei de aniversário do meu marido. Não era traje de festa, mas eu estava vestida com esmero.

Chegando perto do espaço da palestra, no grande salão, leio em uma faixa enorme a seguinte frase: “Neste lugar só devem entrar trajes simples.”

Procurei a presidente da Casa e, com um tom alegre disse que não poderia fazer a palestra.

Ela se espantou e perguntou o que estava acontecendo.

“Não estou vestida adequadamente. A Faixa é direta: aqui só podem entrar pessoas vestidas de forma simples. Eu não estou assim. E agora?”

Claro que fiz a palestra, afinal as pessoas que estavam ali mereciam que eu passasse aquilo que estudei, porém aproveitei a situação para dialogar com a presidente sobre esta questão do destaque ao descartável.

Em todo o ambiente não se lia nenhuma frase de Jesus, mas somente aquela faixa enorme, colocando condições aos participantes, estava pendurada no local.

E se alguma senhora rica, carregando fios de ouro no pescoço passasse em frente àquela Casa, decidindo entrar, qual não seria seu espanto ao saber que ali não era bem vinda? Acaso Deus separa ricos de pobres, dando oportunidades para o conhecimento das verdades apenas aos mais humildes?

E se fosse uma prostituta, como também o foi Maria de Magdala, e quisesse entrar ali, mesmo com um shorts curto? Seria convidada a sair por desorganizar o psiquismo masculino? (Sabemos que o problema está na mente daquele que vê e não na roupa que o outro veste).

Se Francisco de Assis se preocupasse com as aparências, jamais teria banhado um leproso…

Conheço missionários incríveis que fazem trabalhos dentro dos prostíbulos de Campinas, ajudando mães e crianças em suas vidas miseráveis, levando Evangelho, comida e amor para estas almas. Estariam eles em risco, já que o lugar os convida à luxúria? Chico Xavier teria deixado de atender um caído do caminho por conta de sua aparência?

A ciência da Psicologia já explicou que aquilo que não damos conta em nós, projetamos no outro. Era disso que falava a parábola que citei acima. Os dedos em riste, apontados contra o outro, geralmente falam muito sobre seu dono…

Por fim, digo que o despretensioso texto não visa trazer à luz todas as questões envolvidas nestes casos, mas entra como um alerta simples, que considero necessário: devemos tomar cuidado com a hipocrisia nossa de cada dia, e, consequentemente, com um possível retrocesso nas práticas de religiosidade.

Se um maltrapilho nos visita podemos ajudá-lo, oferecendo-lhe trajes dignos de um ser humano: limpos e inteiros, caso ele queira (sempre respeitando o livre-arbítrio de cada um).

Porém, vetar acesso às pessoas na Casa Espírita por conta de sua aparência exterior me remete a um dos versículos mais espantosos e ultrapassados que já encontrei em meus estudos do velho testamento, sobre o assunto: “Ninguém dos teus descendentes nas suas gerações, em quem houver algum defeito, se chegará para oferecer o pão do seu Deus pois nenhum homem em quem houver defeito se chegará: como homem cego, ou coxo, de rosto mutilado, ou desproporcionado, ou homem que tiver o pé quebrado, ou a mão quebrada, ou corcovado, ou anão, ou que tiver belida no olho, ou sarna, ou impigens, ou que tiver testículo quebrado”. [Levítico 21, 17-20].

Certamente através da fala e da prática do Cristo entendemos que esta passagem não faz sentido quando se defronta com a questão do Amor Incondicional de Deus às suas criaturas.

Por fim, resumo o texto em um convite simples: que tal uma reflexão que foi também proposta nos Evangelhos e que ainda é válida?

– Precisamos tomar cuidado para não coarmos mosquitos, engolindo camelos…

Jesus sabia das coisas!

Claudia Gelernter

Fonte: Blog da ABPE 

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