domingo, 18 de março de 2018

A abordagem beligerante da desobssessão


1. A visão beligerante

O escritor argentino Eugenio Raúl Zaffaroni[1], no estudo do punitivismo com uma das facetas do Direito Penal, traz como uma das ideias centrais de suas pesquisas que o poder punitivo se construiu na sociedade moderna como uma forma de tratamento hostil para os seres humanos enquadrados em determinadas situações, negando-lhes a condição de pessoa, seus direitos fundamentais, legitimando para estes o tratamento estigmatizante, segregador. Um inimigo do Estado, em uma visão polarizada do mundo, que produz um estado de guerra permanente, que gera medo e coalizão, mas uma união de trincheira.

Essa visão do inimigo que deve ser perseguido e exterminado não figura apenas no Direito Penal punitivista, mas também surge no histórico religioso do fenômeno da Inquisição, como sistema jurídico canônico para combater a heresia, esta que seria capitaneada por uma entidade sobrenatural causadora de todo o mal, que agiria por meio de ardis e tentações.

Modelos tão antigos, mas tão atuais.

Muito ódio permeia essas abordagens de questões religiosas e sociais, e olhando mais amiúde a literatura espírita sobre o fenômeno da desobsessão (a oficial e a controversa), sejam os livros mais técnico-procedimentais, sejam as obras mais romanceadas, figura por vezes, de forma sutil ou ostensiva, uma visão dos espíritos sofredores como inimigos a serem combatidos e expulsos.

Um superdimensionamento conspiratório das organizações dos desencarnados em sofrimento, que é uma visão recorrente no Movimento Espírita, presente também nas falas e práticas, nas quais as pessoas revelam síndromes de perseguição nas quais atribuem suas mazelas aos obsessores, ou ainda, taxam de obsediado qualquer um que apresente opinião divergente do status quo.

Esse discurso de medo, que lembra as histórias de súcubos e de bruxas da Idade Média, ou ainda, lendas escapistas como o Boto no Brasil amazônico, alimentam uma visão teológica de medo e de delegação das responsabilidades individuais, com medidas saneadoras no sentido de se combater esse inimigo, que ainda que chamado de irmão, é visto não como alguém, mas como algo.

Alimentam-se, assim, paranoias, que abrem espaços, inclusive, para que as pessoas sejam vítimas da extorsão por médiuns interesseiros, ou ainda, para que se comportem como soldados de uma guerra sem sentido, buscando estratégias para atacar esse suposto inimigo, motivados no trabalho de assistência espiritual por fatores estranhos à essência dessas atividades.

2. Quem é o inimigo?

Essa visão do inimigo do bem, do espiritismo, da casa, ou seja, “meu” inimigo, surge então na prática da desobsessão nas casas espíritas, constituindo mais um atavismo, uma importação de paradigmas de tempos inquisitoriais, ou de outras denominações religiosas, que tem como foco o exterior, um mal alienígena que precisa ser expulso, ou exorcizado, e que devemos orar e vigiar, em um binômio que poderia ser traduzido como temer e se proteger.

Essa abordagem não adentra nas relações que suportam o processo da obsessão, as paixões, os compromissos passados, e traz tudo para uma visão de uma eterna labuta entre o bem e o mal, como se existissem dois poderes rivais no governo do mundo, e que devêssemos nos posicionar em relação a estes, em uma visão oriunda de uma época em que o homem se encontrava ainda incapaz de, pela razão, penetrar a essência do Ser supremo[2]. Uma matriz desumanizada e que difere em muito da visão da Doutrina Espírita dos atributos de Deus, e do nosso papel na evolução, como encarnados e como desencarnados.

Aí ouvem-se os discursos de que temos que estar atentos, pois querem derrubar o nosso trabalho. Narrativas mirabolantes de tramas que são feitas na espiritualidade para destruir reuniões, parecendo, por vezes, que em nossas residências estaríamos tranquilos e que basta nos filiarmos a um trabalho, para sermos objeto de uma perseguição desenfreada.

Terminamos assim por enxergar os espíritos desencarnados não como seres em evolução, como nós, mas como inimigos que precisam ser combatidos. E nesse desiderato, nos arvoramos como cruzados nas lutas contra as forças do mal das falanges desencarnadas. Esquecemos nossa natureza, que somos todos filhos de Deus, e preferimos o comodismo de um pensamento maniqueísta que busca bons e maus absolutos, indicando apenas a quem devemos combater. O mundo é mais complexo que isso.

Idealizamos heróis, vilões, e aventuras fantásticas, nas quais queremos arregimentar um exército e clamamos por união, motivados pelo medo do que poderá nos acontecer se não encararmos esse inimigo de forma coesa, como em uma organização militar, na busca de uma vitória de Pirro.

O espírito sofredor, agindo individualmente ou por meio de alguma organização, é um agente motivado por interesses, forças, desejos, paixões, como nós, e se busca agir contra casas e trabalhos, vociferando e ameaçando, merece de nós uma postura mais refletida, mais amena, para além de se colocar como inimigo em uma guerra, na qual não devemos nos alistar.

3. Quem é você?

Nesse sentido, a pergunta é qual o nosso papel nessa prática de lidar com obsessores e obsediados em nossas reuniões mediúnicas? Se focarmos em ardis, escaramuças e ainda, na busca da vitória que não virá, pois não é uma batalha, nos afogaremos nessa lógica de buscar o inimigo, e de expulsá-lo ou exterminá-lo, em um paradigma antigo, ainda que por vezes fantasiados por palavras doces e cândidas.

A atividade do dialogador, outrora chamado equivocadamente de doutrinador, não é uma tertúlia racional na qual se impõe a um contendor as nossas verdades, ou de uma doutrina. Assemelha-se muito mais a um esclarecimento ou acolhimento, do que um duelo verbal. Não resgatamos vítimas de obsessores, e sim buscamos atender espíritos que estão irmanados em um sofrimento mútuo, aparentemente vestidos de algozes e vítimas.

Não somos soldados. Somos vetores do amor.

Não podemos patrocinar visões incoerentes com a mensagem de amor do espiritismo, em propostas que fortaleçam o medo, a exteriorização das mazelas, relembrando a lição de Kardec[3], que indica que : “No tocante ao Espírito obsessor, por mau que ele seja, é necessário tratá-lo com serenidade mas ao mesmo tempo com benevolência, vencendo-o pelo bom procedimento, orando por ele”, ensinando-nos que a forma de vencer essa guerra é não vê-la como um confronto. Não nos cabe jogar querosene nessas fogueiras, e sim, água!

O problema não são os espíritos sofredores, magos das sombras, e as suas diversas formas de organização que apimentam a nossa imaginação, e sim como encaramos nas atividades mediúnicas essas interações. Agiremos da mesma forma de outrora, como uma guerra fluídica, energética, verbal, ou entenderemos que a nossa abordagem é que deve ser diferente, pautada no amor, no exemplo, e no conhecimento de forma instrumental que ajude aquele irmão a romper aquele ciclo?

Por óbvio, que quando o espírito se manifesta na psicofonia com ameaças e bravatas, é normal que tenhamos medo, mas é preciso compreender a lógica da causa e efeito trazida pelo espiritismo, e ainda, que nosso papel ali não é de guerreiro que combate o inimigo ali trazido, devendo dar respostas à altura, mas sim de um irmão pelo qual a espiritualidade instrumentaliza o atendimento aquele outro irmão em humanidade, e ainda aproveita aquela interação para ensinar lições profundas a todos que participam da reunião.

4. Conclusão

O livro “O Céu e o Inferno”, de Allan Kardec, uma obra pouco lida, citada e estudada, trata mais do que da Justiça Divina, e sim da quebra dos paradigmas da teologia cristã, mostrando que o espiritismo enxerga essas relações metafísicas de outra forma, consoante com a visão de um Deus justo e bom, e ainda, das vidas sucessivas.

O fracasso dessa quebra de paradigmas se reflete em práticas e discursos, e no caso discutido aqui, em nossa visão dos espíritos sofredores e da abordagem dada na interação com estes.

A visão do obsessor inimigo, que quer nos derrubar, mascara pela sua polarização as relações de nossas reuniões, nem tão perfeitas e ungidas assim, e desses espíritos, desorientados e que sustentam ameaças para esconder as suas fraquezas.

Fiéis à essência do pensamento espírita, enxerguemos o amor como remédio que cura doentes na atividade de obsessão, e não antagonismos que partidarizam grupos, e superestimam nós e eles, quando na verdade somos todos viajores dessa longa estrada chamada evolução.

Marcus Vinicius de Azevedo Braga

[1] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. (Coleção Pensamento Criminológico).

[2] KARDEC, Allan. O céu e o inferno. [tradução de Manuel Justiniano Quintão]. 61. ed. 1. imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013.

[3] KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Tradução da 2ª. edição francesa por J. Herculano Pires. São Paulo – LAKE, 2004.


Fonte: Blog da ABPE

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