sábado, 21 de abril de 2018

Fé raciocinada – um tanto demodé, mas tão necessária


Por Marcus Vinicius de Azevedo Braga

O Livro dos Médiuns, de Allan Kardec (Item 253/Cap. XXIII), narra de forma incidental a história de um agricultor que padece com problemas no seu rebanho havia doze anos, e que para a solução buscou mandar rezar missas, fez novenas, buscou exorcismos e ao buscar Kardec, obteve deste uma orientação, oriunda dos espíritos, de forma que o problema era que o gado estava infectado, pois o homem economizava nas medidas preventivas necessárias.

Esse remoto fato não é muito distante do momento atual que passamos. Basta ligar a televisão, e ver que a racionalidade, e no caso especial, a sua derivação trazida por Kardec – a fé raciocinada -, anda em baixa no mercado, no qual pululam soluções mágicas para questões complexas, soluções essas por vezes truculentas, perdidas em guerras de narrativas.

Essas breves linhas visam adentrar no complexo universo da fé raciocinada na seara espírita e apresenta uma singela tese de por que estamos com esse conceito tão desprestigiado, e que ele pode ser um dos caminhos para superação de nossos conflitos.

1 – A racionalidade

A racionalidade é uma forma de se interpretar a realidade, e vem amadurecendo no decorrer da história da humanidade, com impulsos trazidos por diversos pensadores, como Descartes, Hume, Hegel e outros, numa forma de se contrapor a outras formas de interpretação, como a religiosidade, e é inconteste que o avanço dessa racionalidade permitiu à civilização superar doenças e problemas outros que tornavam a vida humana de menor qualidade.

Em uma visão mais psicológica, Gardner[1] no estudo da obra dos psicólogos Paul Slovic (1938-) e Daniel Kahneman (1934-), esse último laureado com o Nobel de Economia em 2002, indica que a nossa mente funciona com dois sistemas.

Um que chamaremos de Razão, que é mais lento, e examina evidências, calcula e pondera, Trabalha com o tempo e com causas, consequências e riscos. Tem suas motivações possíveis de serem traduzidas em palavras.

Um segundo, que chamaremos de emoção, tem percepção rápida, mesclada de medo, de pressentimento e de intuição, e motiva a ação por impulso, não sendo possível traduzir essas motivações em palavras. Um mecanismo de defesa em situações que não se pode pensar, e se precisa agir.

O segundo foi muito útil em nossa trajetória, e ainda é. Ele não explica, simplifica, se relacionando com a ideia de instinto, presente em O Livro dos espíritos, como uma espécie de inteligência para conservação, mas também com a ideia de pensamento mágico.

O pensamento mágico se apresenta por mitos e contos de fadas, como uma forma de dar explicações rápidas para situações apresentadas, nos permitindo ficar seguros[2] em nosso mundo interior. Assim, explicam-se as trovoadas como São Pedro arrumando os móveis, ou se utiliza a história de João e Maria para se apreender a crueldade do mundo, em exemplos de formas de mediar a realidade de acordo com nosso estágio evolutivo.

Essa visão mágica, direta e intuitiva, foi ao longo da história humana sendo acrescida de uma dimensão racional, que explica, compara, pondera e critica. Que não se contenta com essa explicação superficial e busca se aprofundar na raiz, nas forças que levam àquele fenômeno.

Hoje em dia, em que pese a tecnologia, e suas maravilhas a olhos vistos, curiosamente temos sinais de que essa racionalidade anda meio em baixa, por movimentos terraplanistas, negação de vacinas, messianismos e polarizações, que simplificam o complexo, e fazem as decisões apartadas da realidade, e o movimento espírita não está longe desse contexto.

2 – A fé raciocinada

A princípio a ideia de uma fé raciocinada parece contraditória, dado que a fé visa suprir as lacunas, sendo um sentimento interior, misterioso e inexplicável, certamente residente no sistema “emocional” do cérebro.

Nesse sentido, Kardec, ao trazer essa ideia, diferencia em O Evangelho segundo o Espiritismo a fé sentimento, confiança na realização de algo, da fé como crença em dogmas particulares, e daí, nesse sentido, ele adjetiva uma fé de cega, pautada em ilusões, isolando o indivíduo da realidade, de uma fé raciocinada, que teria um caráter libertador, por se valer da força da razão, como mecanismo de interpretação da realidade.

Mas por que algo sintonizado com a realidade tem sido tão mal cotado em nossas fileiras? É fato, é muito mais oneroso aplicar métodos às novas verdades, do que seguir por um caminho mais simplista. Assim como as verdades se vinculam a autoridades e questionar fere poderes, coisas postas, hábitos e seguranças aos quais as pessoas se agarram.

Mas pode-se dizer que o contexto externo, de confronto da racionalidade, dela se tornar um tanto demodé, também afeta ao nosso singelo movimento, que oferta explicações complexas para situações que queremos simples, como um produto semipronto adquirido no supermercado, e que basta colocar no forno micro-ondas.

Não digo que necessitamos abandonar a dimensão simbólica, natural do ser humano (valei-me Carl Gustav Jung), ou mesmo que se proscreva a intuição, mas o que está acontecendo é o oposto, tratando-se da redução da racionalidade como caminho, esquecendo-se, no caso espírita, que essa é uma marca indelével de nossa filosofia, sendo uma bússola que nos orienta e protege.

3 – Assustados, fugimos da realidade.

Vivemos uma época de profusão de tecnologia, o que trouxe uma aproximação das pessoas, na ideia da Aldeia Global[3], e na velocidade de um raio temos acesso ao mundo que alguém se dispõe a nos mostrar. Caem os véus, e isso desnuda a realidade e permite a sua manipulação. Temos mais acesso ao saber, mas isso também causa ansiedade e medo.

Um tempo pós-moderno, no qual tudo se transforma, tudo é um vir-a-ser e isso abala rumos e pressupostos, o que gera perplexidade, medo e abala a confiança, nas estruturas e nas pessoas. Recebemos coisas prontas, mas que não são confiáveis.

Hoje, com a revolução tecnológica invadindo cada espaço, a informação percorre milhas em segundos e o saber que vinha de longe, de boca em boca, perde a sua importância, fazendo com que os fatos já nos cheguem acompanhados da sua explicação. As informações surgem novas a cada segundo, sobre os mais diversos pontos, onde o valor maior desta é a sua estranheza, novidade ou violência. “É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável. A faculdade de intercambiar experiências[4]

Nesse complexo turbilhão de forças e informações, queremos o pensamento mágico, simplificador, que nos trará a paz pelas narrativas heroicas, explicações fantasiosas, que nos abrigam diante da realidade que não damos conta, como crianças assustadas, que precisam de contos de fadas mediadores.

Aí, destrona-se a racionalidade, abandonando a essência, na busca da aparência, esquecidos que os avanços se dão na realidade. Fugas pelas drogas, pela fantasia, pelo fanatismo, pela idolatria. Fuga de um mundo que quando já entendemos, ele muda.

Conclusão:

O que o espiritismo vem sofrendo com o enfraquecimento da racionalidade pode ter relação com o contexto mundial em que vivemos, de extremismos, de baixa confiança, de aversão a se adentrar na raiz das coisas, quebrando as ilusões.

A fé raciocinada se faz necessária. Mais do que nunca. Como forma de interpretar o mundo e trazer o equilíbrio concreto, na essência das coisas, como método de separação do joio do trigo, como orientação diante desse mundo ciclópico. Junto da fé raciocinada, vem o diálogo, o respeito, a temperança.

O pensamento mágico tem seu papel, e já teve a sua predominância, mas para aplacar o medo nessa escura caverna platônica em que nos aninhamos, cabe-nos largar o espetáculo de sombras e caminhar no sentido de ver o belo dia que desponta lá fora. E o sol é radiante!



[1] GARDNER, Dan. Risco: A ciência política do medo. Rio de Janeiro: Odisséia, 2009.

[2] BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

[3] Aldeia global é um termo criado pelo filósofo canadense Herbert Marshall McLuhan. Ele tinha o objetivo de indicar que as novas tecnologias eletrônicas tendem a encurtar distâncias e o progresso tecnológico tende a reduzir todo o planeta à mesma situação que ocorre em uma aldeia: um mundo em que todos estariam, de certa forma, interligados, conforme https://pt.wikipedia.org/wiki/Aldeia_Global

[4] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.



Fonte: Blog da ABPE

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