segunda-feira, 4 de junho de 2012

A questão da liberdade e do Livre Arbítrio


Tomo III
Capítulo III
A VONTADE DO HOMEM

          A palavra liberdade é empregada num sentido mais ou menos lato. Há filósofos que atribuem ao homem uma liberdade ilimitada. A seu ver, o homem cria, por assim dizer, a sua própria natureza, adquire as faculdades que deseja e age independente de qualquer lei. Tal liberdade está em contradição com um ser criado. Tudo quanto possam dizer a seu favor não passará de declamações enfáticas, desprovidas de senso e de veridicidade.
          Outros há que admitem uma liberdade absoluta, em virtude da qual o homem age sem motivo. Isso, porém, é presumir efeito sem causa, é isentar o homem da lei de causalidade. Seria uma liberdade contraditória de si mesma, podendo-se proceder num mesmo caso bem ou mal, mas sempre sem motivo. Inúteis seriam, então, todos os institutos de finalidade beneficente, individual ou coletiva. De que serviriam as leis, a Religião, as penalidades e recompensas, se nada determinasse o homem? Por que esperar de outrem amizade e fidelidade, antes que ódio e perfídia? Promessas, juramentos, votos, tudo ilusão! Tal liberdade nada tem de real, não passa de especulativa e absurda.
          Precisamos, ao contrário, reconhecer uma liberdade acorde com a natureza humana, liberdade que a legislação pressupõe liberdade raciocinada.
          Três são as condições fundamentais da legítima liberdade: em primeiro lugar, é preciso que a criatura possa escolher entre vários motivos. Seguindo o motivo mais forte, ou agindo só por prazer, já se não opera com liberdade. O prazer não é mais que uma falsa aparência de liberdade. A ovelha que mastiga a erva com prazer não está exercendo um ato livre.
          Obedecendo a um desejo mais forte, também o animal, quanto o homem, não pratica livremente, tampouco. A condição precípua da liberdade é a inteligência, ou a faculdade de conhecer e escolher os motivos. Quanto mais ativa a inteligência, mais ampla a liberdade. Os idiotas natos, as crianças até uma certa idade, têm, às vezes, desejos muito enérgicos, mas ninguém os considera livres, visto não possuírem inteligência bastante para distinguir o falso do verdadeiro. Os homens mais bem educados e os mais inteligentes são os de quem, mais que dos ignorantes, deploramos as faltas. À medida que se elevam na série das faculdades intelectivas, os animais vão-se tornando mais livres e modificam mais individualmente os seus atos, de acordo com as circunstâncias exteriores e com as lições de sua prévia experiência. Se empregamos a violência para impedir o cão de perseguir a lebre, ele se lembrará das pancadas que o aguardam e, árdego e trêmulo ao império dos próprios desejos, não deixará de ceder. O homem, superior a todos os seus irmãos da escala zoológica, é, por sua mesma natureza, o ser que goza de liberdade no grau mais eminente. Só ele procura encadear efeitos e causas, comparar melhor o presente e o passado, e daí tirar conclusões para o futuro. Pesa as razões, detém-se nas que lhe parecem preferíveis, conhece a tradição. Seu raciocínio decide e perfaz a vontade esclarecida, muitas vezes contrariamente aos seus desejos.
          Uma última condição da liberdade é a influência da volição sobre os instrumentos que devam operar suas ordens pessoais. O homem não é responsável por desejo ou por faculdades afetivas dele independentes. A responsabilidade individual começa com a reflexão e com a possibilidade de proceder voluntariamente. No estado de saúde os instrumentos operatórios subordinam-se à influência da vontade. A fome é involuntária, mas, se em senti-la, eu me abstiver de comer, exerço a influência da minha vontade sobre os instrumentos do movimento voluntário. A cólera é involuntária, mas eu não sou forçado a maltratar quem me provoque, só porque a minha vontade influi em meus músculos. Perdido o domínio dessa influência, então sim, o homem já não é livre. É o que amiúde sucede com os alienados, que experimentam desejos, reconhecem a sua inconveniência, chegam a maldizê-los, mas não têm a força de restringir os movimentos involuntários, chegando mesmo, algumas vezes, a pedir que lhos embarguem.
          A liberdade moral é a base mesma da sociedade e se ela não passa de ilusão, todo o gênero humano, tanto as nações incipientes como as mais civilizadas, que cultivam a Ciência e governam a Matéria, bem como os povos remotos, toda a Humanidade, – repetimo-lo – ter-se-ia deixado iludir pelo mais colossal dos erros que ainda existiu, depois de enveredar pela senda mais falsa e injusta que possamos imaginar. Mas... que dizemos: – injusta? Neste sistema, essa palavra nada significa e visto que o bom e o mau não existem; visto não haver ordem moral, claro é que todas as palavras concernentes à descrição dessa ordem, todos os pensamentos e julgamentos carecem de sentido. E, contudo, a menos que abstraiamos a própria consciência, não podemos anuir a semelhantes conclusões.
          Quaisquer que sejam as conclusões teóricas a que cheguem os lógicos na questão do livre arbítrio – dizia Samuel Smiles –, todos sentimos que somos praticamente livres de escolher entre o bem e o mal. Não somos o seixo que, lançado na torrente, apenas pode seguir o curso das águas. Ao contrário, sentimos em nós a força do nadador, que pode escolher a direção convinhável, lutar contra a corrente, ir mais ou menos aonde lhe praza. Nenhum constrangimento absoluto nos empece a vontade. Sentimos e sabemos no concernente aos nossos atos, que não somos encandeados por qualquer espécie de magia. Todas as nossas aspirações para o bem e para o belo ficariam paralisadas se pensássemos de modo diverso. Todos os negócios, nossa conduta na vida, regime doméstico, contratos sociais, instituições públicas, tudo, enfim se baseia na noção prática do livre-arbítrio. E sem ele, onde estaria a responsabilidade? De que serviria ensinar, aconselhar, predicar, reprimir, punir? Para que leis, se não houvesse uma crença universal como o próprio fato universal, de que dos homens e de sua determinação depende conformar-se ou não? O homem que melhor evidencia seu valor moral é o que se observa a si mesmo, dirige as suas paixões, vive conforme a regra que se impôs, estuda suas aptidões e suas falhas.
          Eis, verdadeiramente, o homem: sua grandeza está na sua liberdade. Não fora livre o homem, não se lhe permitiria ter fome e sede, nem comer nem beber; nem senhorear, em coisa alguma, as tendências do seu corpo. A ordem social não se teria constituído.
          Mas nós não temos necessidade de prova alguma exterior para afirmar a nossa liberdade. Ninguém melhor o sabe do que a nossa própria consciência. Ela é, aliás, a única coisa que possuímos completamente nossa, e a boa ou má direção que lhe damos, em definitivo, só depende de nós. Nossos hábitos e pendores não são nossos amos, mas servos. Mesmo quando com eles transigimos, a consciência adverte-nos de que poderíamos resistir e que, para vencê-los, não careceríamos de fortaleza superior às nossas possibilidades, se fizéssemos finca-pé. É pelo emprego livre da razão que nos fazemos o que somos. Se ela apenas propende para o sensualismo é que a vontade, forte e demoníaca, subjuga e escraviza a inteligência. Bem dirigida, porém, essa mesma vontade compara-se a uma rainha, tendo por ministros as faculdades intelectuais e presidindo ao maior desenvolvimento compatível com a natureza humana.
          Este pretenso ateísmo científico tomou o encargo de rebaixar e destruir todos os caracteres da grandeza humana. Não pode, contudo, impedir a alma de provar o seu valor, de assomar a matéria, construindo-se de si mesma com os elementos do seu meio e do seu clima.
          Ele, o materialismo, não percebe que se a personalidade humana fosse resultado de influências fatalísticas da Natureza, a criança e o selvagem, sob o governo quase exclusivo dessas forças, seriam mais sensatos, mais íntegros que o sábio, o filósofo, o artista. Tal consequência destrói, por si só, a teoria dos nossos adversários.

Autor: Camille Flammarion
Fonte: Deus na Natureza; Vade Mecum Espírita (http://www.vademecumespirita.com.br)

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