Medo, razão e fé
André Haguette
Os sentimentos de medo e esperança são fundamentais na vida cotidiana em vários aspectos. A sociologia centralizou seus estudos nas relações de poder e dominação. Neste contexto, a indagação central passou a ser por que os homens obedecem? E a resposta mais sólida parece ser: por medo e/ou esperança. Medo de sofrer as consequências da rebeldia e esperança nas promessas do dominador. Mas esses dois sentimentos não permitem somente o exercício do poder, eles também alavancam a ciência e a religião.
A ciência é uma atividade essencialmente racional, voltada para desvendar, explicar ou compreender o funcionamento da natureza e do homem e desta forma diminuir o medo e injetar promessa de um mundo melhor, promessa sempre adiada. A ciência, não há menor dúvida quanto a isso, tem contribuído sobremaneira para elucidar enigmas do mundo, afastando medos, ilusões e permitindo intervenções favoráveis ao progresso humano em inúmeros setores da vida, embora, ao mesmo tempo, tenha proporcionado a degradação da natureza e oferecido meios de destruição. Mas o que caracteriza o efeito da ciência é um contínuo processo de racionalização, um processo de desencantamento do mundo, tornando o mundo mais banal e trivial, liberto de deuses e falsos mistérios. O trovão não é mais a voz dos deuses e a lepra (hansianismo), sinal de castigo de Deus.
O homem tornou-se mais senhor de si mesmo e de seu destino e, neste sentido, a religião pôde e pode ver a ciência como sua grande inimiga. A ciência, com efeito, obriga a religião, baseada na fé do desconhecido e não na razão do conhecido, a recuar constantemente em suas interpretações, assim como não é mais possível à religião ver a terra como centro do universo ou acreditar que o mundo foi criado em sete dias e que o mal é consequência da transgressão de Eva.
A racionalização propiciada pela ciência obriga a religião a abandonar sua magia, sua mitologia e suas ilusões para centrar-se na sua principal função que é de dar significado à vida, tarefa para a qual a ciência se encontra totalmente despreparada, já que, metodologicamente, lida com explicações e não com significados.
Assim sendo, tanto a ciência como a religião, embora constantemente (e desnecessariamente?) rivalizem entre si, contribuem para diminuir o medo dos homens como para aumentar a esperança em uma vida melhor na terra. A fé religiosa acrescenta a esperança da vida eterna. Para muitos fieis, todavia, & talvez para a grande maioria deles & a fé não é busca de sentido diante do mistério da vida e da consciência; não visa o além, o sobrenatural, a glória de Deus; não visa a salvação da alma, mas, de maneira mais prosaica, a fé visa curar as dores deste mundo; o bem de salvação procurado é a redenção neste mundo, a obtenção de favores, aqui e agora.
A salvação desejada não é tanto a da vida eterna, mas a salvação da doença, da pobreza, do amor perdido, do filho pródigo, etc., isto é, a salvação das misérias e contingências deste mundo, em busca de uma vida terrestre feliz. Sem dúvida esta fé resvala para a religiosidade, quando não para a magia em busca de todo tipo de cura e milagre, o que ocorre quando devotos correm para Juazeiro, Canindé, Lourdes ou Fátima; a religião torna-se religiosidade e se desprende totalmente da fé teológica, da fé na Páscoa, isto é, na passagem da morte do Cristo à sua ressurreição, comprovando a sua divindade. O Cristo, Luz, Caminho e Verdade, é certamente menos atraente que Nossa Senhora e uma plêiade de santos objetos de idolatria (ou quase idolatria), o que pode explicar que a Páscoa, data magna da cristandade teológica, seja menos festejada do que o aniversário de muitos santos.
O homem contemporâneo, contrariando a sociologia dos anos 50 do século passado, não vive somente da razão e da ciência, embora delas precise; não vive somente da fé na salvação da alma e da Glória de Deus; ele vive, acima de tudo, da emoção da religiosidade e das promessas de milagres para dissipar seus medos e sacudir sua esperança numa vida melhor neste mundo, contingente e mortal.
* Artigo publicado em 04.04.2010 no jornal O Povo e reproduzido neste site com autorização do autor.
Fonte: André Haguette é Sociólogo - haguette@superig.com.br
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