domingo, 23 de agosto de 2009

1869 – Os primeiros meses sem Allan Kardec

Adilton Pugliese

O retorno inesperado do Codificador do Espiritismo à Pátria Espiritual, com o rompimento súbito de um aneurisma, na manhã de 31 de março de 1869, em sua residência, na Rua Sainte-Anne, 59, em Paris, provocaria excepcionais providências emergenciais por parte dos seus sucessores. O acontecimento fundamental previsto, naquele dia do desenlace, eram os preparativos da mudança de endereço residencial do mestre. Antes de desencarnar, Allan Kardec havia planejado cuidadosamente os motivos daquela alteração de domicílio, quando previra descentralização e sistematização das atividades. Assim, produzira um documento aviso que seria publicado na primeira página da Revista Espírita de abril de 1869, informando: a) que o escritório de assinaturas e de expedição da Revista seria alterado para a sede da Livraria Espírita, Rua de Lille, no 7: b) que a sede da redação da Revista e o seu domicílio pessoal seriam transferidos para a Avenida e Villa Ségur, no 39, atrás dos Inválidos.
Existia, assim, um Plano de Trabalho, de conteúdo dinamizador, para os anos futuros, o qual teve que ser revisto pelos continuadores da missão do Codificador, sobretudo pelos dirigentes da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), também conhecida como Sociedade Espírita de Paris ou Sociedade de Paris. Allan Kardec planejara, por exemplo, o Projeto de Comunidade Espírita, em sua propriedade particular, na Villa Ségur, idealizado em 1862 e que visaria “facilitar a tarefa do seu sucessor”.1 Ficamos a imaginar o impacto daqueles primeiros dias sem a presença física do Codificador.Ausente o líder, o presidente da Organização, todos certamente estavam dominados pela perplexidade, pela insegurança quanto ao porvir. São vários os registros, na História, de Instituições ou de Comunidades que se extinguiram em decorrência do desaparecimento prematuro, inesperado, do seu principal dirigente, sobretudo quando estratégias não foram estabelecidas, quanto aos tempos futuros, visando a perenidade da obra.
Os sucessores do Codificador tinham conhecimento da missão prevista para o Espiritismo, consoante mensagem obtida em Marselha, através do médium Sr. Jorge Genouillat, em 15 de abril de 1860, quando a Entidade comunicante, que se assina Um Espírito, declara:

O Espiritismo é chamado a desempenhar imenso papel na Terra. Ele [...] restaurará a religião do Cristo [...]. Extinguirá para sempre o ateísmo e o materialismo [...].2

Igualmente sabiam a respeito da “Influência do Espiritismo no Progresso”, e que ele se tornaria “crença geral” e marcaria “nova era na história da humanidade”, conforme exarado na questão 798 de O Livro dos Espíritos.3 Eram assim imensos os desafios para manter a chama do Consolador prometido por Jesus e acesa por Allan Kardec. Assim, Kardec, sabendo das consequências que o seu retorno repentino e ausência direta poderiam causar, naquele momento crucial, manifesta-se na SPEE, por considerar, sobretudo, os planos de trabalho cogitados para o futuro, metas a concretizar e a consolidar. No decorrer do mês de abril de 1869, suas comunicações foram transmitidas a vários médiuns e reunidas numa única mensagem, divulgadas na Revista Espírita de maio daquele ano.
Dita o Codificador, dirigindo-se aos seus amigos e companheiros dos primeiros momentos do advento do Espiritismo:

Como vos agradecer, senhores, pelos vossos bons sentimentos e pelas verdades expressas com tanta eloquência sobre os meus restos mortais? [...] Que não seja Paris, que não seja a França o teatro de vossa ação; vamos a toda parte! [...] Sede confiantes em vossas forças: elas produzirão grandes efeitos se as empregardes com prudência; sede confiantes na força da ideia que vos une, pois ela é indestrutível. [...] Coragem, pois, e esperança. Esperança!... [...]4

Em junho de 1869 a Revue publica nova comunicação do Codificador, no capítulo Dissertações Espíritas, intitulada “O exemplo é o mais poderoso agente de propagação”, obtida em 30 de abril daquele ano. Em seus comentários, após as saudações afetuosas, informa que na última sessão, quando fora evocado, não atendera porque “estava ocupado alhures”, esclarecendo:

Nossos trabalhos como Espíritos são muito mais extensos do que podeis supor e os instrumentos de nossos pensamentos nem sempre estão disponíveis.
Tenho ainda alguns conselhos a vos dar quanto à marcha que deveis seguir perante o público, com o objetivo de fazer progredir a obra a que devotei a minha vida corporal, e cujo aperfeiçoamento acompanho na erraticidade.5 (Grifo nosso.)

Em seguida, exorta:

O que vos recomendo principalmente e antes de tudo, é a tolerância, a afeição, a simpatia de uns para com os outros e também para com os incrédulos.5 (Grifamos.)

Essas comunicações devem ter sido um bálsamo, um estímulo aos sucessores do mestre, a exemplo do Sr.Muller, do Sr. Levent (vice-presidente da SPEE), do amigo Alexandre Delanne,do jovem Camille Flammarion, de Bittard (Gerente da Livraria) e do Sr.Malet (que seria o novo presidente da SPEE), dentre outros. Antes dessas comunicações, os componentes da Comissão que dirigia a SPEE se reuniram, em 9 de abril de 1869, com a seguinte justificativa:

Em face das dificuldades surgidas com a morte do Sr.Allan Kardec, e para não deixar em suspenso os graves interesses que ele sempre soube salvaguardar, com tanta prudência quanto sabedoria, a Sociedade de Paris foi levada, no mais curto prazo, a se constituir de maneira regular e estável, tanto para as providências junto às autoridades, quanto para tranquilizar os espíritos timoratos sobre as consequências do acontecimento imprevisto que, repentinamente, feriu toda a grande família espírita.6


Durante o encontro, é apresentado pelo vice-presidente Levent o novo presidente da SPEE, sucessor de Allan Kardec, o Sr. Malet, que “reúne todas as grandes qualidades necessárias para assegurar à Sociedade uma direção firme e sábia”.7 Levent enfatiza em seu discurso a dedicação do Codificador, que dirigira a SPEE desde a sua fundação, declarando:

Esperemos que tão nobre exemplo não seja perdido; que tantos trabalhos não fiquem estéreis e que a obra do mestre seja continuada; numa palavra, que ele não tenha semeado em terra ingrata.7

Em seguida, apresenta duas metas indispensáveis para a nova gestão:

[...] 1º a mais completa união entre todos os societários; 2º respeito ao programa novo que o saudoso presidente, na sua solicitude esclarecida e em sua lúcida previsão, tinha preparado há alguns meses e publicado na Revista de dezembro último [1868].7

Esse programa faz parte do documento intitulado “Constituição do Espiritismo”, considerado o canto do cisne, de “reflexões e inspirações do Codificador”8, que “resultou de plano concebido pelo menos oito ou nove anos antes de 1869”,8 e que em dezembro de 1868 foi publicado com “cortes e acréscimos”. Mais tarde, em 1890, esse documento seria inserido no livro Obras Póstumas, por Pierre Gaëtan Leymarie. Compulsando a Revista Espírita de 1869, observaremos, no período de abril a dezembro daquele ano, metas concretizadas pela nova gestão pós-Allan Kardec, e outros acontecimentos ocorridos em face de sua desencarnação:

• A expedição da Revista Espírita é transferida para a sede da Livraria Espírita, à Rua de Lille, no 7;9
• O escritório da redação da Revue Spirite e o domicílio pessoal do casal Allan Kardec passam para a Avenida e Villa Ségur, no 39, atrás dos Inválidos;9
• A SPEE faria as suas sessões, provisoriamente, no mesmo local da Livraria;9
• São realizadas reuniões da nova gestão, através da Comissão Central, visando “não deixar um só instante a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas sem direção legal, aceita e reconhecida”;10
• Posse dos sete componentes da nova diretoria para o período 1869-1870, composta pelos Srs. Malet, Levent, Canaguier, Ravan, Desliens, Delanne e Tailleur, sob a presidência do primeiro;
• Doação à Caixa Geral do Espiritismo, pela Sra. Allan Kardec, Amélie Boudet, do “excedente dos lucros provenientes da venda dos livros espíritas e das assinaturas da Revista, bem como das operações da Livraria Espírita”,11 mediante condições expressas no documento de cessão;
• Em julho informa a concretização da 11a edição de O Livro dos Médiuns e a 4a edição de O Céu e o Inferno;12
• Em agosto, a Revista informa a “Constituição da Sociedade Anônima sem fins lucrativos e de capital variável da Caixa Geral e Central do Espiritismo”, 13 consoante ato de 3 de julho de 1869, idealizada pela Sra. Allan Kardec e formada com o concurso de mais seis outros espíritas. No ato constitutivo a descrição do objetivo da nova Sociedade: “[...] tornar conhecido o Espiritismo por todos os meios autorizados pelas leis”.13 A iniciativa foi alvo de calorosas felicitações e grande satisfação por parte de correspondentes e dos espíritas em geral – destacaria o exemplar da Revue do mês de setembro de 1869;14
• Em setembro, anuncia a Revista a demissão do Sr.Malet, a pedido, da presidência da SPEE;15
• Em dezembro, é publicada matéria acerca da “Sessão Anual Comemorativa dos Mortos”, realizada em 1o de novembro de 1869, sobretudo em especial reconhecimento à memória de Allan Kardec.16

Depreende-se, assim, que foram intensas as atividades daqueles “espíritas da primeira hora do Espiritismo”, nos instantes desafiadores da nova fase que experimentaria o Movimento Espírita nascente nas terras da França, mas cujo campo de atuação seria o mundo! A esses pioneiros certamente muito devem os primeiros desbravadores do Espiritismo no Brasil. A todos eles nossas homenagens.

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