domingo, 23 de agosto de 2009

Joana D'Arc Por Ela Mesma



Livro psicografado por Ermance Dufaux, moderna edição da Petit Editora em linguagem atualizada, é um marco na história do Espiritismo. Publicado em Paris, em 1855 - dois anos antes do lançamento de "O Livro dos Espíritos" -, é obra de inestimável valor, um clássico que resgata a memória daquela que foi a heroína da França, médium que, entre outras percepções, era capaz de profetizar acontecimentos.
Toda a verdade sobre seus feitos heróicos, sua origem, suas idéias, sentimentos, alegrias e sofrimentos estão retratados neste livro. É Joana D'Arc de corpo inteiro, que se desvela diante do leitor, sem esconder nenhum detalhe de tudo que lhe aconteceu durante sua breve existência, inclusive as visões e os diálogos com os benfeitores espirituais que a assistiram. Foi por intermédio da médium Ermance Dufaux que Joana manifestou-se. Na "Revista Espírita" (Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira), de 1858, Kardec refere-se à mediunidade da jovem: "Embora a faculdade da senhorita Dufaux se preste à evocação de qualquer espírito, de que nós mesmos tivemos provas nas comunicações pessoais que ela nos transmitiu, sua especialidade é a História".

Trecho do livro:
"Essa negociação logo começou a se arrastar; por um lado, o conde de Ligny não conseguia se decidir a me entregar aos meus inimigos e aos carniceiros da Inquisição; por outro lado, Carlos VII tentava obter, junto ao duque de Borgonha, uma autorização para pagar meu resgate. Esses atrasos aumentavam ainda mais o ódio de meus inimigos, que o descarregavam em todos os que se interessavam por mim, mesmo nos que guardavam um silêncio prudente. Uma bretã, chamada Pierrone, foi queimada por ter afirmado que eu era boa e que tudo o que eu fazia era bem feito, aos olhos de Deus. Para que fosse punida com alguma aparência de justiça, alegou-se que ela havia blasfemado, dizendo que Deus lhe aparecia freqüentemente, vestido com uma longa vestimenta branca, coberta por uma túnica vermelha. Mesmo que ela estivesse cometendo o delito de mentir, bastaria que fosse internada em um hospício.
O conde de Ligny começou a vacilar; só foi contido pelos apelos de sua mulher, que se jogou a seus pés, por diversas vezes, para lhe suplicar que não me enviasse para a morte. Apesar dos cuidados que minhas nobres hospedeiras tomavam para me esconder as notícias, eu não deixava de tomar conhecimento delas. O que me causava mais sofrimento era estar impossibilitada de socorrer Compiègne. O desejo de levantar o cerco à cidade fora um dos maiores motivos de minha tentativa de evasão do castelo de Beaulieu. Meus inimigos se aproveitavam de minhas preocupações. Os guardas me davam, todos os dias, falsas informações, dando conta de derrotas dos franceses, ou de novas desgraças que teriam se abatido sobre eles. Vendo como isso me afligia, um deles chegou ao ponto de me dizer que todos os habitantes de Compiègne, a partir da idade de sete anos, seriam massacrados. Essa notícia me provocou uma dor tão grande que quase enlouqueci; muitas vezes eu gritava, em minha perturbação e agitação: Como Deus deixaria perecer as boas pessoas de Compiègne, tão fiéis a seu mestre?
A notícia de que eu fora vendida aos ingleses acabou por me fazer perder a cabeça. Decidi que iria tentar de tudo para não cair nas mãos dos inimigos, o que me deixaria completamente sem esperanças de socorrer os habitantes de Compiègne. Minhas santas protetoras tentaram, em vão, acalmar meu nervosismo. Só me restava uma oportunidade de escapar, mas era arriscada: teria que me atirar do alto da torre onde estava encerrada, que não tinha menos de 30 metros de altura. Não me ocorreu, entretanto, o pensamento de que eu pudesse me matar, ou mesmo me ferir. A execução desse projeto era bastante difícil para mim, vigiada como era. São Miguel, Santa Margarida e Santa Catarina, principalmente, fizeram de tudo para que eu mudasse de idéia. Santa Catarina me dizia, quase todos os dias, que não seria preciso que eu saltasse; que Deus viria me ajudar, assim como aos habitantes de Compiègne. Eu lhe respondi que, já que Deus iria socorrê-los, eu queria estar lá.
- Joana - respondeu ela -, é preciso que tu suportes com paciência o que acontecerá; tu não serás libertada antes que vejas o rei-menino da Inglaterra.
- Pois é - respondi eu. - Mas eu não quero vê-lo, nem cair nas mãos dos ingleses.
Quando chegou o momento propício, encomendei-me a Deus e a Nossa Senhora; fechei os olhos e tomei impulso. Primeiro, senti que percorria o espaço com rapidez; depois, tive a impressão de que minha queda se tornava mais lenta, como se braços estivessem me sustentando. Entretanto, quando toquei o solo, minha cabeça bateu com força contra uma pedra; a dor que senti me fez desmaiar. Os guardas acorreram; vendo-me imóvel, pensaram que estava morta. Logo recobrei os sentidos e lhes perguntei, completamente atônita, por que eu estava lá. Eles me disseram que eu tinha me jogado da torre. Perdera completamente a memória do que ocorrera.
Enquanto me desesperava por estar impossibilitada de correr em socorro dos habitantes de Compiègne, escutei a voz de Santa Catarina, que me dizia:
- Joana, tem coragem! Tu ficarás boa e o povo de Compiègne será socorrido.
Mas essa promessa não foi o suficiente para me tranqüilizar sobre o destino dos moradores daquela fiel cidade; fiquei tão abalada pela minha impotência em ajudá-los que passei três dias me recusando a ingerir qualquer tipo de alimento.
Minha desobediência às determinações dos santos me causava muito desgosto. Santa Catarina, vendo que eu lamentava amargamente esse erro, disse-me que me confessasse e pedisse perdão a Deus. Obedeci. Ela me garantiu que Deus tinha me atendido e que, até a festa de São Martinho, do inverno, Ele socorreria os habitantes de Compiègne.
Minhas boas amigas, a senhora de Beaurevoir e a senhorita de Luxembourg, não me abandonaram; cercaram-me de cuidados constantes e não demorei a me restabelecer completamente. Uma nova provação me aguardava: teria que deixar essas amigas tão queridas, que Deus me concedera durante meu infortúnio. O momento do adeus foi muito doloroso; parecia a nós três que aquela seria a última vez em que nos veríamos na terra; um vago pressentimento me fazia temer infelicidades mais terríveis; mas a religião me deu apoio. Deixei-as levando no coração a esperança de revê-las em uma vida melhor.
Fui levada a Arras, lugar onde os oficiais nomeados pelos conselheiros do rei-menino deveriam me buscar. Logo me conduziram ao castelo do Crotoy, na Picardia. Lá fui tratada com muito mais rigor do que em Beaurevoir; mas também tive o consolo de uma amizade: um padre de Deus, homem cheio de mérito e virtudes, estava preso na mesma prisão. Era Nicolas Quenville, chanceler da igreja de Amiens, doutor em direito canônico e direito civil. Quase todos os dias, ele celebrava a santa missa em uma sala do calabouço que tinha essa finalidade. Como era muito devota, eu assistia sempre a essa missa e recebia quase todos os dias os sacramentos da eucaristia. Os santos me apareciam sempre, especialmente São Miguel. Ele fizera para mim diversas previsões a respeito da França; eu repetira a Carlos VII as que lhe diziam respeito, em particular. Todas se cumpriram. Os santos também me haviam feito grandes revelações sobre o duque Charles d'Orléans, então prisioneiro na Inglaterra; disseram-me, entre outras coisas, que seu filho único, que nasceu muitos anos após minha morte, subiria ao trono depois do neto de Carlos VII, e que sua memória seria venerada entre os franceses. Outras revelações importantes me foram feitas naquela época; mas repeti-las seria uma divagação inútil e tediosa.
Enquanto definhava resignadamente em uma triste prisão, as promessas de meus celestes protetores se realizavam: os franceses obtiveram diversas vitórias e Compiègne fora libertada. Gourmay-sur-Aronde, Pont-Sainte-Maxence, Longueuil e muitas outras cidades haviam permanecido sob domínio francês. Meus inimigos me ocultavam cuidadosamente essas notícias; mas os santos as contavam para mim e eu sentia mais alegria do que se tivessem anunciado minha libertação. Poton de Xaintrailles e seus bravos companheiros terminavam minha obra com dignidade, graças à sua bravura e à proteção dos Céus. Mas os ingleses me viram como a causadora de suas derrotas e sua raiva contra mim aumentou. Em altos brados, até os soldados mais rasos exigiam minha morte. Embora fosse sua prisioneira, eles me temiam tanto que se recusavam a participar de qualquer incursão, pensando que, enquanto eu vivesse, só poderiam obter derrotas.
Os ingleses subalternos se comportavam como tiranos em relação aos franceses, que suportavam o jugo com impaciência. Tiravam as mulheres de seus maridos e as filhas, de seus pais; subtraíam de infelizes pais de família, muitas vezes, os frutos de seu trabalho, para dissipá-los em orgias. Nada se podia comparar à horrenda miséria dos franceses. Muitos procuravam no suicídio um remédio para os males, que eram mais terríveis que a morte. Mas, em sua grande maioria, tornavam-se escravos dóceis e covardes aduladores de seus cruéis perseguidores. A Universidade de Paris, que tantas vezes dera exemplos de sabedoria, era então composta inteiramente por esse tipo de gente. Essa instituição escreveu duas cartas no dia 2 de novembro; uma delas, dirigida a Pierre Cauchon, bispo de Beauvais, lamentava a lentidão deste, dizendo-lhe que, se ele tivesse agido com a presteza necessária, meu processo já teria começado; e que, longe disso, eu ainda nem estava em suas mãos. A carta terminava lhe fazendo um convite para me julgar em Paris. A outra missiva era destinada ao menino-rei, ou seja, aos seus conselheiros. Tinha por finalidade convencê-los a me entregar ao bispo de Beauvais e à Inquisição. O duque de Bedford e o cônsul inglês esperavam que essa medida jogasse sobre a nação francesa a desonra pública de uma morte que, afinal, seria útil aos interesses ingleses.
Novos reveses vieram agravar minha situação, aumentando o terror supersticioso de meus inimigos. Decidiram então me transferir para Rouen, onde estavam o rei-menino e seus conselheiros. Durante a viagem de Crotoy até a capital normanda, fizemos algumas paradas. Na última delas, enquanto me preparava para montar no cavalo, um inglês que estava perto de mim, achando que eu não montava com rapidez suficiente, deu-me um golpe de lança na parte do corpo que entra em contato com a sela. Embora o ferimento não fosse profundo, não deixou de me provocar dores insuportáveis.
Fui encarcerada na grande torre do castelo de Rouen. Haviam forjado, para mim, uma espécie de gaiola de ferro, dentro da qual me puseram. Fiquei em um espaço bastante estreito; puseram-me uma grossa corrente no pescoço, outra na cintura e outras nos pés e nas mãos. Teria sucumbido a esse terrível infortúnio se Deus e minhas santas protetoras não tivessem me trazido consolo. O anjo Gabriel, o mesmo que anunciou à Virgem Maria sua divina missão, veio me visitar diversas vezes. Nada pode descrever a tocante solicitude e o incrível conforto que me deram. Morrendo de fome, vestida pela metade, cercada de imundícies e machucada pelos ferros, eu tirava da religião a coragem para perdoar meus carrascos.
A duquesa de Bedford, irmã do duque de Borgonha, logo soube como eu estava sendo tratada; tocada pela piedade, tanto se aplicou em meu favor junto ao duque, seu marido, que fui transferida para um aposento bastante amplo, iluminado por uma janela que se abria para um campo. Minha situação foi um pouco amenizada. Durante o dia, eu era acorrentada pelos pés; mas as correntes eram bastante longas para me permitir andar um pouco na cela. Durante a noite, eu era presa pelos pés por um par de correntes presas firmemente em uma grande peça de madeira. Outra corrente era posta ao redor de minha cintura; de tal forma que eu não podia me mover. Cinco ingleses, escolhidos entre as camadas mais baixas da população, foram encarregados de me vigiar. Três deles dormiam de noite em minha cela, enquanto os dois restantes vigiavam a porta. Diariamente, atormentavam-me com as injúrias mais sórdidas; divertiam-se me acordando durante a noite, dizendo-me que eu iria morrer e que iriam me conduzir à fogueira. Apesar disso, eu não conseguia acreditar que os ingleses quisessem me matar, pois não cometera nenhum crime que pudesse me valer a pena capital. Achava que me devolveriam em troca de dinheiro; e que, se eu ainda não estava livre, era porque Carlos VII não terminara as negociações pelo meu resgate.
Eu era extremamente casta, mas essa virtude foi para mim uma fonte de novas provações. Meus guardas, sabendo que detestava os maus costumes, divertiam-se repetindo canções obscenas e trocando palavras indecentes. Não satisfeitos com as palavras, tentaram por diversas vezes me violentar. Isso acontecia tanto por vontade deles mesmos quanto por obediência ao bispo, que lhes prometera uma grande recompensa se conseguissem tirar minha virgindade. Caso tivessem conseguido, Cauchon poderia facilmente obter minha condenação como bruxa. A salvação do gênero humano saíra de uma virgem. Acreditava-se quase universalmente, no mundo cristão, que Satã nutria pela mulher imaculada uma aversão insuperável e respeitosa, o que tornava essa qualidade incompatível com a magia e a bruxaria. Certa vez, os guardas foram tão longe que, se o conde de Warwick, atraído por meus gritos, não tivesse vindo em meu socorro, eu estaria perdida. Graças a este senhor, os guardas foram trocados por outros, que me respeitaram mais. Os perigos desse tipo, que eu correra desde que saíra do castelo de Beaurevoir, fizeram-me sentir um profundo reconhecimento por minhas santas protetoras. Com meus trajes de homem, ficava menos expostas às indignidades. Se tivesse cedido à insistência das senhoras de Beaurevoir, ao sair da casa delas, teria perdido a segurança que agora me davam essas roupas.
Algumas pessoas vinham me observar, embora isso fosse um favor dificilmente concedido; o que era uma felicidade para mim, pois as perguntas de uns, as zombarias de outros e a curiosidade de todos, juntamente com uma enorme indiferença, eram-me extremamente penosas. Nas grandes desgraças, o isolamento é uma graça que todos os desafortunados sabem apreciar. Pelo menos podemos chorar à vontade, sem medo de olhares indiscretos e indiferentes.
Meu processo custou muito dinheiro aos ingleses; além da enorme soma que gastaram para me obter, pagaram todas as custas; fizeram também pagamentos consideráveis a todos os que nele tomaram parte.
O bispo não podia exercer seu poder na diocese de Rouen sem o consentimento do capítulo investido da autoridade arquiepiscopal, já que a sede de Rouen ainda não fora ocupada. Então solicitou a autorização aos religiosos, que obteve sem dificuldade. Os documentos que lhe concediam território e jurisdição para instruir meu processo em toda a região da diocese foram redigidos prontamente.
Os documentos promulgados pelo menino-rei surgiram logo depois. Em seu nome, os conselheiros autorizavam que eu fosse levada a julgamento. Mas enquanto concediam ao bispo de Beauvais o direito de instruir o processo, juntamente com a Inquisição, davam a entender que só me entregavam à justiça eclesiástica com certa repugnância. Os conselheiros se reservavam o direito de contestação, em nome do jovem Henrique, caso eu não fosse condenada à morte. Com isso, não restava para mim nenhuma oportunidade de salvação.
Cauchon tomou todas as precauções para seguir escrupulosamente os procedimentos utilizados pela Inquisição, de modo que o julgamento que iria presidir usufruísse da mesma validade infalível. Para isso, julgava indispensável a presença do inquisidor; portanto, envidou todos os esforços para convencê-lo a tomar parte no processo. Mas se ele desejava ardentemente que o irmão Jacques Graverand estivesse entre os juízes, este não desejava de forma nenhuma figurar no caso. Presentes, promessas, até ameaças de morte, nada foi poupado para vencer seus escrúpulos; por bem ou por mal, ele teve que se envolver em meu processo. Para a diocese de Rouen, ele indicou Jean Le Maistre, um dominicano, a quem não agradava muito a missão que lhe fora confiada. Ele levantou milhares de obstáculos e conseguiu participar apenas como testemunha e douto consultor. Mais tarde, entretanto, teve que aceitar o papel de juiz.
O bispo de Beauvais realizou uma conferência com oito doutores diplomados e mestres em ciências humanas, para combinar as primeiras medidas a serem tomadas. Jean Le Maistre não participou; no entanto, figurou como juiz no processo verbal dessa sessão. Nela foram levantados todos os detalhes necessários sobre minha pessoa, sobre minha captura e sobre meus pretensos crimes. Foram lidas todas as formalidades que diziam respeito ao meu processo, tais como os documentos que o autorizavam e as permissões territoriais concedidas ao bispo de Beauvais. Após a exposição de motivos da conferência, o bispo instruiu os colegas sobre as informações que já existiam sobre mim e, de comum acordo, decidiram que coletariam novas informações, mais amplas e precisas. Procedeu-se, então, à eleição dos oficiais do tribunal e ao estabelecimento de todas as preliminares do processo.
Quase todos os doutores sugeriram que eu deveria ser transferida, conforme o costume, para uma prisão eclesiástica; mas o bispo fez pé firme e declarou que não seria ele quem iria me tirar do castelo de Rouen. Essa resposta provocou muitos murmúrios. Mas Cauchon tomou tanto conhecimento do descontentamento dos doutores consultados quanto de minhas reclamações.
Numa segunda sessão, realizada em sua casa, o bispo leu o processo verbal da assembléia anterior e, em seguida, distribuiu aos conselheiros e aos juízes assistentes as informações obtidas a meu respeito, tanto em Domrémy quanto em Vaucouleurs, assim como nos lugares mais freqüentados por mim.
Tinham lhe informado que eu era boa filha, casta, modesta, paciente, moderada, prudente, muito meiga, trabalhadora, temente a Deus, e que gostava de cuidar de doentes; que era bem-educada, de acordo com meu nível social, e dotada de boas maneiras; que eu tinha uma conversa tranqüila e honesta; que nunca praguejava, que obedecia aos meus pais e que procurava a companhia das mulheres e moças mais virtuosas; que quando terminava os trabalhos domésticos, que me ocupavam desde o nascimento até a época em que deixei a região, em vez de perambular pelas ruas ou ir dançar com as outras jovens, eu ia me ajoelhar na igreja para rezar, com reverência e fervor; que eu era tão tímida que a menor palavra me perturbava; e tão caridosa que, freqüentemente, repartia meu pão com os pobres; enfim, tão hospitaleira que meu pai, muitas vezes, teve que usar de sua autoridade para me impedir de ceder meu leito a pobres desabrigados; que assistia regularmente às missas e recebia os sacramentos com a disposição de uma boa cristã; minhas ocupações, diziam, eram as de todas as crianças do vilarejo: o trabalho de colheita, juntamente com os outros moradores, e os cuidados com a casa, divididos com minha mãe e minha irmã. Meus divertimentos eram tão inocentes quanto minhas ocupações. De vez em quando, fazia peregrinações e acendia velas diante das imagens de Nossa Senhora e dos santos. No verão, trançava guirlandas de flores com minhas amigas, para decorar as capelas campestres. Costumava, também, ir com minhas amigas cantar sob a árvore das fadas; era uma grande faia, de notável beleza, que ficava próxima a uma fonte. Já falei dela no começo deste relato. A árvore servia de ponto de reunião para todo o povoado; moças e rapazes iam dançar lá, acompanhados de seus pais; lá fazíamos refeições campestres, alegradas pelos trovadores itinerantes ou pelas histórias contadas pelas boas mulheres do vilarejo; os castelãos de Domrémy não deixavam de se misturar a esses folguedos. Catherine de la Roche, senhora de Domrémy, esposa de Jean de Boulermon, sempre comparecia, acompanhada de suas filhas. Nas procissões, os galhos da árvore venerável, repletas de guirlandas, transformavam-se em um pequeno santuário florido, onde era depositada a imagem do Salvador do mundo.
Não havia nisso nada de repreensível. Cauchon decidiu então falsificar os depoimentos que compunham a investigação, que transmitiu à assembléia da maneira que achou melhor."

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