Sylvio Ourique Fragoso
Parte I
Duas Palavras
Os registros hagiológicos estão repletos de fatos que muito pesaram na balança em favor da canonização de homens e mulheres que, por suas vidas de renúncia e dedicação ao Cristo, têm hoje suas imagens colocadas pelos altares incensados e, segundo se crê, do alto dos Céus intercedem junto a Deus pelos que na Terra neles depositam suas esperanças, cada um dentro de sua especialidade, tirada quase sempre dos detalhes que mais destaque tiveram em seus martírios, pois que muitos foram perseguidos pelos governadores e imperadores, na aurora do Cristianismo, ou pela própria religião organizada, a exemplo de Joana D’Arc que, acusada de ter visões e ouvir vozes, foi depois canonizada porque ... ouvia vozes e tinha visões.
Não podemos nem queremos negar a esses mártires o valor espiritual e a envergadura moral que lhes são atribuídos, muito embora sem endosso ao título de "santo" que se lhes antepõem ao nome, visto estarmos todos em processo contínuo de aperfeiçoamento, o que faz que, uma vez atingido o maior grau de elevação espiritual que as experiências terrenas podem conferir, ascenda a alma a outros mundos superiores, onde possa auferir novas experiências, a exemplo do aluno que, aprovado em um ano letivo, passa a receber aulas mais adiantadas. Sabe-se também que pelas oportunidades palingenésicas, muitos dos chamados santos do Catolicismo são a reencarnação de um mesmo Espírito, acontecendo dessa forma o fato curioso de se venerar o mesmo ser como se fossem duas entidades distintas. Assim é que vemos muitas vezes, lado a lado, imagens de João Evangelista e de Francisco de Assis, ou de Inácio de Loiola e de Vicente de Paula, quando consta ser este último a reencarnação do criador da Companhia de Jesus, e o Pobrezinho de Assis, o renascimento na veste física do Vidente de Patmos. Se se adotou no título deste artigo o qualificativo usado popularmente, e se ele se repete mais vezes no presente escrito, tal se dará apenas pela finalidade proposta, qual seja, de identificar as personalidades das quais se fala, ao demonstrar que todos foram médiuns, e seus "milagres", fatos perfeitamente explicáveis à luz da Terceira Revelação, o que, aliás, em nada lhes diminui o mérito. Tentaremos escoimar desta narrativa fatos que, pela sua absurdidade, devem ser levados à conta de lendas ou de intercalações apócrifas, alguns dos quais o próprio Catolicismo rejeita. Para isso tivemos o cuidado de só consultar as biografias devidamente autorizadas pela Igreja, conforme faremos constar neste trabalho.
Preciso é que se diga que os acontecimentos narrados nos hagiológios e que aqui reproduzimos, não os aceitamos incondicionalmente como verdadeiros. Geralmente são fatos muito antigos e não observados em condições ideais de pesquisa. Admitimos a possibilidade de terem ocorrido, considerada a similitude com outros fenômenos medianímicos, estes sim, bem averiguados. Quem garante a autenticidade do que aqui vai narrado é a própria Igreja, que a tudo fez publicar.
Reafirmamos também que não é nosso intento negar os méritos morais desses santos. Se compararmos, por exemplo, um fenômeno de bilocação produzido por Antônio de Pádua com outro, levado a efeito por Sagée, a comparação obviamente se dará apenas quanto ao teor fenomênico, sem que se procure estabelecer paralelos morais entre os protagonistas.
Da Mediunidade
Sobre a mediunidade, em si, pouco se teria a dizer aqui, agora. Conforme se sabe, ela é a faculdade pela qual podemos perceber a presença ou influência dos Espíritos. Não é privativa de nenhum grupo de pessoas e nem pede, para a sua manifestação, a crença neste ou naquele sistema ideológico-religioso. Existiu sempre e sempre existirá, pois que, sem depender necessariamente da moral, à medida que o Espírito se eleve mais facilmente entra em contato com a realidade extra-física, sintonizando-se com faixas mais sublimadas da espiritualidade. As ocorrências mediúnicas pontilham em todas as épocas da humanidade e assinalam a vida de todos os povos. A interpretação dada aos fenômenos não os invalida, nem lhes tira as características. Embora em todos os povos, em todos os lugares, em todas as épocas, tenha existido a crença na sobrevivência da alma e nas suas manifestações, muitas vezes os Espíritos manifestantes foram considerados deuses, semideuses, elementais, larvas ou o próprio Deus, criador de tudo. São principalmente deste último gênero as interpretações que encontramos no Velho Testamento. A Bíblia está, efetivamente, toda ela repleta de narrativas de caráter nitidamente mediúnico. O próprio José, esposo de Maria, mãe de Jesus, entrou em contato com Espíritos, considerados "anjos". Ora, se atentarmos para o sentido etimológico dessa palavra, veremos que anjo significa mensageiro, isto é, o que se faz porta voz de alguém. Portanto, se um homem entra em contato com um "mensageiro" e este não é um ser corpóreo e sim espiritual, aquele que lhe registra a presença é um médium, isto é, um intermediário entre dois planos da existência. Se esse anjo é um ser perfeito ou apenas perfectível e, considerada a primeira hipótese, se ele já foi criado em estado de perfeição, é assunto que foge aos limites aqui propostos, embora a lógica nos diga que Deus, suprema fonte de justiça, não iria criar seus filhos desigualmente, premiando alguns que nada fizeram para merecê-lo, com um estado de perfeição ab ovo, enquanto que milhares de seres permanecem chafurdados no erro e no vício, entregues à própria sorte que veriam selada de forma inexorável após alguns poucos anos de vida corpórea, e que nada podem significar perante a eternidade. Há a se considerar também, o problema dos anjos decaídos, o que equivale a um retrocesso na vida espiritual. Lúcifer teve a chance de pecar. Terá alguma de se redimir dos erros? Parece que não, pois tão logo manifestou sua rebeldia, foi lançado nos abismos infernais onde, segundo dizem, a sorte está definitivamente lacrada. Ora, sendo Deus onisciente, e o é, saberia desde sempre que aquele anjo que iria criar um dia e que dentre todos seria o "mais sábio" (ainda aqui a desigualdade!) haveria de se perder e, com sua queda, conquistar para as caldeiras fumegantes da geena boa parte das criaturas humanas, frágeis que somos. Sabendo que seria assim, por que Deus o criou, apesar de tudo? Nós que somos tão pequenos, não colocaríamos um filho no alto do muro se soubéssemos que ele de lá iria se despencar. Deus o faria?
Quando se admite a chance da expiação, da reparação e, consequentemente, da remissão, compreende-se que Deus permita a queda. A experiência será valorosa e o progresso adquirido, meritório, pois que a ele se fez jus. Mas criar um ser, sabendo de antemão que ele irá se perder irreparavelmente, então isto raia pela suprema crueldade, sendo incompatível com as qualidades tributadas ao Criador. Mas muitos há que nisso crêem, e não é à-toa que se diz que se Deus criou o homem à Sua imagem, este lhe pagou na mesma moeda...
Tornando à mediunidade, sabe-se que ela sempre existiu, independentemente das convicções religiosas. E por ser assim, os médiuns amoldam a interpretação de suas experiências medianímicas na conformidade de suas crenças. Dessa forma, se um profitente de outro credo que não o espirítico tiver uma vidência, não reluta em interpretá-la: se a visão for bonita, será um anjo, ou a Virgem, ou um santo em que sua fé repouse. Se a coisa vista, porém, for atemorizante, o diagnóstico é ainda mais fácil : era o demônio.
Se em uma casa ocorrem ruídos, pancadas, movimentos de objetos, logo se há de pensar que o "capeta" está fazendo das suas. Mas em bem pobre conta se deve ter o demônio para pensar assim, visto que com suas manifestações ostensivas, ele não consegue arregimentar para si nem mais uma alma, pois com suas pedradas o mais que pode é fazer com que os crentes, assustadíssimos, ponham-se a fazer preces, novenas, promessas e comunhões, arriscando-se ainda, o diabo, a levar por cima uns borrifos de água benta...
Exatamente por extremismos de tal ordem, tantas pessoas foram anatematizadas, excomungadas, torturadas e queimadas em praça pública. As religiões organizadas, não querendo considerar as infinitas gradações da espiritualidade, esquecidas de que a natureza não dá saltos, entendem que uma manifestação espiritual ou há de ser divina e o ser manifestante um anjo ou um santo, ou será demoníaca, principalmente quando ocorrer em ambiente de outra religião, pouco importando que a mensagem transmitida seja de conteúdo moral e evangélico irrepreensível.
Com isso em mente, passemos a ver alguns fenômenos mediúnicos apresentados pelos santos da Igreja e sua analogia com a vasta gama fenomenológica espírita, e vejamos a que conclusões nos pode levar este pequeno estudo comparativo.
julho/1979
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