quinta-feira, 3 de junho de 2010

A TEMPERATURA DOS ESPÍRITOS

Sylvio Ourique Fragoso





E ao passar diante de mim um Espírito, os cabelos de minha carne se arrepiaram (Jó, 4,15).



Tradicionalmente as narrativas populares sobre aparições vêm associadas às noites de tempestade, quando sopra um vento gélido a bater venezianas e a sacudir o arvoredo, enquanto a chuva tamborila com força na vidraça. Se não há chuva, há que existir ao menos um denso nevoeiro a embaralhar a vista, tanto quanto a própria aparição confunde o pensamento. Na melhor da hipóteses teríamos o palor da lua a se derramar languidamente sobre as cruzes brancacentas de um cemitério meio abandonado. Em Hamlet, Shakespeare faz o fantasma do rei da Dinamarca aparecer junto às névoas, numa noite de "frio acerbo e penetrante". Eça de Queiroz, em O Defunto, prefere o clarão "amarelo e lânguido da lua cheia" a iluminar as forcas junto às quais D. Rui de Cardenas teria de passar em busca de sua aventura amorosa. Shelley escolhe uma "tétrica noite de novembro" para fazer com que a horrenda criatura do Dr. Victor Frankenstein abra os olhos, mortos até então.

Mas com tempestade, luar ou nevoeiro, uma coisa é freqüente: a sensação de frio que assalta aquele que se depara com um ente fantasmático. E os calafrios são tão comuns nos casos de assombramento, que o próprio Pe. Quevedo formulou uma teoria para explicar o fato: na fantasmogênese haveria dispêndio de energia, fazendo cair a temperatura do local onde o fenômeno se dá. O defeito desta hipótese (como de resto o de todas as teorias do ilustre parapsicólogo) é não poder encaixar-se na generalidade dos casos. E também não podemos esquecer a possibilidade de que o arrepio seja apenas uma reação nervosa produzida pelo medo ante o inusitado do ser fantasmal. Parece que foi o que aconteceu com Jó, conforme se deduz do relato bíblico.

De qualquer forma, o Espiritismo veio mostrar que os Espíritos podem revelar sua presença independentemente das condições atmosféricas e do horário. Embora seja certo que o escuro possa tornar perceptível uma aparição demasiado débil para ser vista à luz do dia, tudo o mais vai por conta da imaginação dos contadores de casos.

Mas o fato é que, consumindo energia ou causando medo, nem sempre as aparições provocam frio em quem as vê. Muito ao contrário, algumas vezes os Espíritos deixam marcas de sua presença que mais se associam ao fogo que à gelidez. E é sobre estas ocorrências que nos deteremos.

Os fenômenos de Espíritos que irradiam calor suficiente para queimar objetos e pessoas não é novo. O caso abaixo foi publicado por Richet nos Annales des Sciences Psychiques, e ocorreu em 1654, na Hungria. Vale a pena lembrar que a primeira publicação, feita ainda naquele ano, foi autorizada pelo Monsenhor Lippai, Arcebispo de Sttigont. É o seguinte:

Havia um cidadão de nome Johan Klemens, que não gozava de muito boa fama, e que morreu aos 60 anos. Vai daí, uma mocinha chamada Regina Fischerin começou a entrar em transes durante os quais o Espírito Klemens apresentava-se produzindo toda a fenomenologia que hoje conhecemos bem: luminosidades, transporte de objetos, voz direta, etc. Imagine-se o que isto não terá causado no século XVII. Sabe Deus por qual milagre não escapou a Regina das fogueiras da Inquisição! Pois bem. Um dia a moça desafiou o Espírito para que a tocasse. Ele então a pegou pelo braço, causando-lhe um grande ardor no local, onde surgiu uma bolha de queimadura. Para saber se se tratava de um Espírito bom, Regina pediu-lhe que fizesse o sinal da cruz (!). No mesmo instante a roupa da médium se queimou, deixando ver no local em que se queimara a forma exata de uma cruz. Sinal idêntico apareceu na mão da jovem através da ulceração do tecido, tal como se uma cruz em brasa ali se houvesse encostado.

Aquele Espírito deixou ainda a marca de sua mão, queimada em um pano. Ocorre que, em vida física, Klemens sofrera a amputação da falange distal do dedo indicador, e na marca deixada no tecido essa falange também faltava.

É muito de se notar que neste caso, como em vários outros, as marcas de queimadura deixadas pelas mãos dos Espíritos em panos ou papéis não ultrapassam os limites da própria mão, quando a tendência do fogo seria propagar-se por esses materiais. Mas vejamos outro caso.

Em uma das sessões mediúnicas realizadas pelo Rev. Stainton Moses, um médium viu um Espírito de aspecto desagradável, sentado ali perto. Tratava-se de uma vidência mediúnica, pois que o Espírito não estava materializado. Em certo momento o médium declarou que o Espírito lhe tocara a mão, e todos os presentes puderam ver o que local se tornara avermelhado, com o surgimento de uma bolha de queimadura.

É claro que num caso desses não faltará quem atribua o fenômeno a uma estigmatização produzida por auto-sugestão, algo assim como o efeito da sugestão hipnótica ou de uma conversão histeróide. De fato, através da hipnose é possível não só evitar-se o efeito de uma queimadura real como produzir-se a marca de uma que, na verdade, não haja ocorrido: o hipnotizador encosta o dedo ou um objeto qualquer no indivíduo hipnotizado e afirma estar encostando nele um cigarro aceso ou uma brasa, e o sinal da queimadura aparece. Inversamente, encosta-se um cigarro aceso na pessoa em transe hipnótico afirmando-se que se trata de outra coisa qualquer, e a pele não se queima. Por incrível que isso possa parecer, é um fato. Ficaram famosas as experiências do gênero feitas com Ana Salomon e que até hoje os tratados sobre hipnologia mencionam. Mas essa explicação, obviamente, não se enquadra quando a marca de queimadura não se faz sobre a pele de alguém, mas sobre panos, papel ou madeira. E se nestes casos a explicação deve ser outra que não a sugestão, não há motivo para pretender-se reduzir a um efeito sugestivo todos os casos em que as marcas ocorrem sobre a pele.

O caso seguinte foi citado por Podmore, aquele mesmo que juntamente com Gurney e Myers compunha o famoso trio de "caçadores de fantasmas".

A jovem M. P. dormia com sua irmã no mesmo quarto. Uma noite M. P. acordou com a sensação de que havia mais alguém no local. Assustada, chamou por sua irmã mas esta também já acordara e experimentava a mesma sensação. Nesse momento M. P. sentiu que lhe tocavam o rosto. Aos gritos de ambas toda a família correu para lá, acendendo a luz. Não havia mais ninguém no quarto, mas no rosto da moça viam-se nítidos sinais de queimadura em forma de mão, com os dedos abertos.

Este outro caso foi colhido por Bozzano, conforme publicado em Luce e Ombra, e ocorreu no convento de Santa Clara, na Umbria. Não se estranhe a terminologia aqui usada, pois tal foi a que empregou o Pe. Isidoro, o primeiro a fazer um relatório dos fatos que ora resumimos.

Morrera o Pe. Panzini, abade de Mântua. Aí o Pe. Isidoro Gazale, que fora seu confessor, entendeu que aquela alma encontrava-se no purgatório, e então autorizou a Irmã Clara Isabel Fornari, que começara a "suportar grandes abandonos", a oferecer os tais "abandonos" para a salvação da alma do falecido. Um dia tornou-se visível o desencarnado, e como a Irmã Clara lhe pedisse uma prova de sua presença, o Espírito colocou a mão sobre a mesa de trabalho da freira e imprimiu ali, através de uma queimadura na madeira, o sinal da cruz, "como as almas do purgatório têm o costume de fazer". (!) Em seguida o mesmo Espírito segurou a manga da religiosa e, com a outra mão, uma folha de papel. E as impressões de sua mãos ficaram marcadas, em forma de queimadura, tanto no hábito da monja como no papel. Essas "relíquias" ainda hoje estão guardadas naquele convento.

O leitor já terá deduzido que os "grandes abandonos" que a religiosa vinha experimentando mais não eram que transes mediúnicos. Curiosa mesmo foi a "autorização" que o Pe. Isidoro deu para tal ocorrência. Não podemos refrear a idéia do que teria acontecido se, em vez de "autorizar" o fenômeno, o bom padre resolvesse proibi-lo. É bem capaz que ele, ante a persistência dos "abandonos" em desobediência à sua autoridade, atribuísse tudo à ação do Capirocho...

Para concluir, vamos a mais um caso também ocorrido em um convento e igualmente publicado em Luce e Ombra. Desta vez o cenário das ocorrências foi o Convento das Terciárias Franciscanas de Sant’Ana de Foligno, na Perúgia, onde viveu e morreu a Irmã Tereza Margarida Giesta. Como os fenômenos começaram a ocorrer alguns dias após a sua morte, que se deu em 04/11/1853, antes portanto do advento do Espiritismo, não pode o nosso Pe. Quevedo dizer que tais fatos acontecem "pela vulgarização das idéias espíritas". E depois, idéias espíritas grassando num convento de franciscanas, não é lá muito de se esperar. Pois bem, o fato é que três dias após o decesso da religiosa, todas as freiras passaram a ouvir lastimosos gemidos provindos do quarto antes ocupado pela que ali morrera.

Prosseguiam assim as coisas até que no dia 16 a Irmã Feliciana, intrigada com aqueles sons e mais valente que suas companheiras de hábito, imaginou que um gato se trancara em algum armário do quarto e foi averiguar. Nada porém havia ali. E como os gemidos prosseguissem, a intrépida freira exclamou:

- Jesus, Maria! O que há? - Mal acabara de falar, ouviu nitidamente a voz da falecida (que conhecera bem, pois foram companheiras de trabalho) que dizia:

- Meu Deus, como eu sofro!

Embora já não mais tão corajosa, a monja manteve um diálogo com "a voz" de sua antiga colega. Logo mais, porém, o quarto começou a "encher-se de fumaça" e o Espírito da Irmã Tereza se fez visível. Só que, embora prosseguisse falando, a Irmã Feliciana já não entendia direito o que a aparição lhe falava. Mas viu bem quando o Espírito caminhou e aplicou na porta do quarto um forte tapa com a mão espalmada. Aí a "fumaça" se dissipou e o Espírito sumiu.

A notícia se espalhou pelo convento como fogo em rastilho de pólvora. Todas as religiosas queriam ouvir a narrativa do fenômeno, até que alguém se lembrou de olhar a porta onde o Espírito batera. E foi então que descobriram a impressão da mão da falecida, profundamente queimada na madeira.

Tomando conhecimento da notícia, o arcediago de Foligno mandou redigir uma ata dos fatos. E fez mais: determinou a exumação do cadáver da freira e aplicou-lhe a mão sobre a marca da porta. E a mão se encaixou ali perfeitamente.

Salvo engano, essa é a porta que está hoje em Roma, no "Museu das Almas". É isso mesmo: há no Vaticano o "Museu das Almas" e o "Museu do Diabo". Quem sabe um dia ambos serão fundidos em um só, que se chamará "Museu dos Espíritos"?

O relatório deste caso vem assinado pela Madre Abadessa, pelas Irmãs Decanas, pela Irmã Vigária e ainda pelos padres Vicente Amoressi e Joaquim Priore Medori, este último pró-vigário geral. E o Pe. José Sensi, guardião dos Menores Observadores de São Bartolomeu, certificou que os fatos todos ocorreram segundo as regras da sã moral católica. E também, pode-se acrescentar, segundo as regras do que se conhece sobre a fenomenologia espírita. Tudo indica que a Irmã Feliciana era médium de efeitos físicos. Enquanto o fenômeno era apenas de "voz direta", ela pôde dialogar com o Espírito. Depois, quando o quarto começou a ficar cheio de "fumaça", isto é, quando a liberação de ectoplasma foi mais intensa de modo a permitir a materialização da falecida, o transe mediúnico acentuou-se e a freira, embora ainda consciente, já não captava mais com nitidez o que o Espírito lhe dizia, pelo atordoamento causado pelo próprio transe. Também a famosa médium D’Esperance permanecia consciente durante as materializações que produzia. No caso da Irmã Feliciana, só quando a "fumaça" desapareceu foi que ela conseguiu gritar, chamando a atenção das outras religiosas.

Ainda haveria mais casos para narrar, como aquele atestado por Bozzano, em que as lágrimas vertidas por um Espírito que chorava provocaram queimaduras em uma pessoa, mas o espaço é pouco. Fica porém a interrogação: como é possível a um Espírito, por vexes, gerar calor suficiente para queimar pessoas e objetos? A revista The Progressive Thinker, de abril de 1923, publicou sobre isto a resposta de um Espírito que disse que quando um ser espiritual toca uma pessoa e esta sente frio, é porque as moléculas fluídicas que tornaram o Espírito substancial estão vibrando em freqüência inferior à das moléculas do corpo daquela pessoa, e o inverso se dá quando o Espírito produz uma queimadura. Mas esta resposta, até certo ponto óbvia e simplista, não encerra o problema. Resta saber como agem os Espíritos para queimar um pano ou papel sem que a marca do fogo se espalhe para além dos limites de sua mão ou do desenho que queiram fazer e como podem, com um simples tapa, queimar profundamente a madeira de uma porta.

Mas não obstante todo o calor que possam gerar, o fato é que ainda por muito tempo as aparições deverão continuar provocando nas pessoas menos preparadas para vê-las o mesmo tradicional calafrio que já uma vez arrepiou os cabelos de Jó. E isto com sol, chuva, luar ou nevoeiro.

julho/1984

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